De quando fomos felizes

Camilo Irineu Quartarollo

 

A memória recria roteiros e aspectos que “parecem” nossos, conforme sentimos ou não conseguimos compreender o que sentíamos.

– Mãe lembra quando eu era criança e fiquei chorando no portão porque não ganhei presente?

– Não, filho, não era você. Era seu primo! Ele que ficou chorando. Você ficou assustado, vendo ele. Foi isso!

O cérebro tem mecanismos que nos dão referências essenciais, mas nos enganam também. Recria para lembrar fatos e sensações, diálogos, palavras, etc. e pode bloquear acontecimentos traumáticos de nossas lembranças.

No mito das origens, curiosamente, Deus cria a luz antes do “façam-se luzeiros para o dia e para a noite, sol e lua”. Trabalhou rápido, sete dias, seguindo a liturgia judaica e acabou na sexta-feira para descansar junto com os judeus, no sábado! (Está claro que é uma história contada por hábeis sacerdotes, usando figura de linguagem própria da cultura judaica e fácil aos ouvintes, era como uma música de hoje, um poema, na verdade, uma catequese da deportação à Babilônia)

O livro do Gênesis não é compêndio de História natural, não “é” a Origem das espécies de Charles Darwin, não tem nada a ver com o primeiro homem científico. É a criação do nada que ainda não se conhecia, do saudoso jardim esquecido, do país de onde foram retirados, de quando fomos felizes. Fomos? Alegorias com a afirmativa essencial de um poder, o do Deus do oprimido entre muitos deuses. Caberia até em enredo de carnaval, mas iam atacar os peladões eva e adão.

Era mesmo bom no éden? Por mais felizes que fossem estavam confinados por um deus que passeava às tardes pelo jardim e que os mantinha como espelho de sua imagem e semelhança. Mulher e homem se rebelam, numa noite de carnaval – diríamos.

Ao meu ver hoje, o fruto proibido é a consciência da solidão do paraíso. Antes o homem de barro, feito como o oleiro faz um vaso mal feito de quadril estreito, da lama e, Eva, de cintura larga, limpinha da costela de um homem encarnado, completa o casal confinado em lua de mel sem sexo. Aaa… Homem e mulher sem outros iguais ou semelhantes no seu convívio, nem eles geram! Há os animais que agem pela natureza ou instinto e têm réplicas ou eram todos estéreis? O casal então quer se igualar a Deus ou às criaturas, gerar a suas imagens e semelhanças – foi deixado que desse nomes a tudo, até aos rios e cachoeiras, mas o que é de seu mesmo? O ego não desenvolvido, ávido da posse imediata de chupeta, foge do conhecimento e do contato ao novo e aponta para a solidão, pois cada pessoa é única, não réplica.

Onde fica o paraíso? Quando os animais eram todos “bonzinhos”?  Ora, muitos recriam na mente. Alguns apontam para o saudosismo do cristianismo primitivo, quando “havia milagres”, um novo Pentecostes! Apesar da narrativa empolgante dos Atos dos apóstolos, havia grupos dos mais variados matizes e profissões de fé naquele tempo de fome, doenças, barbárie e crises, sob a dominação romana.

Ainda persiste uma abstração histórica de certos movimentos religiosos ou políticos, alguns com viés fundamentalista de cristãos saudosistas querendo a Igreja “primitiva”. Os evangelhos não dizem nada de volta ao passado ou às glórias pretéritas, a ressurreição não é para levantar defuntos, a não ser por alguma figura de linguagem.

Na pseudociência ou pseudopolítica retomam-se velhos clichês, ultrapassados e comprovadamente errôneos como os da terra ser plana – os terraplanistas, ou o ser humano oriundo do casal edênico, ipsis literis – os criacionistas atuais. Surreal e gritante a desinformação implementada por alguns que me parece de má intenção, pois não creio que não saibam, será que não sabem essas questões mais rudimentares e já exaustivamente discutidas há mais de dois séculos!

 

Camilo Irineu Quartarollo, Escrevente Judiciário, escritor, diagramador, capista, ilustrador, editor e autor do livro A ressurreição de Abayomi entre outros

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