Um assassino à solta

José Renato Nalini

 

O que é pior: ele é cultuado. Todos querem tê-lo. É o automóvel. A cada 60 segundos, pelo menos cinco pessoas morrem vítimas de acidente de trânsito. Foi o que apurou um estudo do Conselho Federal de Medicina divulgado em maio de 2019. Só no Estado de São Paulo, em 2018, houve 36.8749 internações registradas no SUS – Sistema Único de Saúde. Isso corresponde a 5,05% de aumento nos atendimentos, comparados com os anos anteriores.

Entre 2008 e 2016, foram 62.390 mortes no Estado. Quase 80% das vítimas são do sexo masculino. Inviável calcular o que isso significa em perda para as famílias e, também, para uma economia cambaleante como a nossa. As mortes ocorrem principalmente na faixa entre 15 e 40 anos, ou seja, no auge da capacidade produtiva. A sociedade investiu nessas vidas, as famílias nutriram expectativas e o sonho acaba em pesadelo.

Os que não morrem sofrem lesões neurológicas que podem deixar a vítima acamada pelo restante da vida ou com significativas limitações que vão do trauma de crânio, com perda dos domínios, até fratura da coluna vertebral e a consequente paraplegia ou tetraplegia.

Nem se fale das amputações de membros, cicatrizes, infecções. Tudo isso poderia ser minimizado, tivéssemos mais consciência e educação no trânsito. Mas o fenômeno é cruel. A educação em geral é deficiente. Essa falta de consciência se agudiza no trânsito. O condutor se “empodera” – palavrinha horrorosa! Sente-se invencível, acima do bem e do mal e permite a explosão de todas as suas fissuras temperamentais. Abusa, exorbita, perde noção de limites e assume a inconsequência.

O número de homicídios dolosos perpetrados por motoristas que assumem o risco de matar é um doloroso índice de nossa incivilidade. Enquanto em outros países a juventude já concluiu que ter carro é algo arcaico, aqui no desenvolvimento retardado o sonho de quase todos é ter o seu carrinho. Pago em setenta e duas prestações, a um custo que faz com que muitas famílias se alimentem mal, não cuidem de sua saúde física e bucal, não tenham moradia decente. Mas tem o automóvel para compensar suas frustrações.

Um país que sofreu durante décadas um assalto às suas já combalidas finanças, vê-se às voltas com mais de 50 bilhões de custo para suportar as consequências dos acidentes de transporte terrestre. Incluem-se nessa conta a assistência médico-hospitalar, os seguros, os danos de infraestrutura, a perda e o roubo de carga.

Nenhuma perspectiva de mudança no cenário, salvo o recrudescimento das multas, que devem ser cada vez mais pesadas. O bolso ainda é o melhor conselheiro para os insensatos que fazem desse instrumento egoísta e poluidor, um assassino à solta, que vai continuar a ceifar preciosas vidas.

 

José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-Graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL)

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