Do bife ao couro

Camilo Irineu Quartarollo

 

Basânio ia se casar. O amigo Antonio lhe afiança junto a Shylock, um agiota, os termos do contrato de empréstimo para o cerimonial. De momento Antônio não tinha o dinheiro que afiançara, mas depois de três meses seus navios voltariam com produtos e dinheiro. Não seria mais insolvente. Está na peça de Sheakespeare, O mercador de Veneza, um caso de contrato entre o mercador e o agiota.

No contrato o agiota Shylock quis pôr uma cláusula em tom de brincadeira: um naco do corpo do mercador Antonio, uma libra, se a obrigação não fosse paga no prazo estipulado. Quis arrancar a carne, mas o advogado alegou que não podia verter sangue veneziano, somente a carne do contrato assinado.

No Auto da Compadecida de Ariano Suassuna, o escritor nordestino põe cláusula semelhante no contrato do coronel com Chicó, mas não é uma libra, um naco de carne, mas uma tira de couro do noivo da filha. Entretanto, quando o pai da noiva vai tirar o couro de Chicó. Pelo visto a noiva Rosinha conhecia O mercador de Veneza, pois a intervenção foi idêntica ao dizer que “A única palavra que se pronunciou nesse contrato foi couro! Ninguém falou em sangue, não foi?”.

Pronto, a defesa vence e João Grilo arremata, bem malandro: “Ou o senhor tira uma tira de couro do Chicó ou não tira nada!”

Isso já deu e dá muitas discussões aos juristas e dum tempo em que se faziam contratos leoninos, como o de Shylock e cuja cláusula famosa é proibida pela Lei e Constituição Brasileira.

Uma Constituição não somente tem leis e proporciona leis específicas e apropriadas pelo Legislativo, mas antes de tudo e fundamentalmente, tem princípios civilizatórios, cláusulas pétreas, norteia a convivência cidadã. Uma lei menor ou contrato não pode contradizer a Constituição.

No sono da razão e despertar da barbárie vêm os justiçamentos, da justiça com as mãos desconstituídas e impróprias, eivadas de brutalidades, expondo o estado de Direito como na peça O mercador de Veneza e os jeitinhos dos brasis.

A questão é que o réu era o mercador Antonio, homem da nobreza, bem nascido e com amigos de posses, inclusive o advogado que o defende com astúcia e bem inteirado da Constituição Venezina.

No caso de Chicó de Ariano Suassuna coube à noiva apaixonada defender o pobre. Esse é um diferencial com a peça do grande Sheakpeare e do que pareceria plágio de Ariano. Não, é mais uma ironia, a de que o pobre também busque algum meio de fazer valer seus direitos em condições adversas. Do pobre assemelhado ao gado de pasto querem lhe tirar o couro que cobre a cabeça, aquece na noite e protege contra espinhos, suspira o popular, e por imposição do chicote. Ao gado é dado o direito ao berro e latir ao cão, ao pobre Chicó espernear, mas ele roga a Compadecida numa composição teatral, para sua vida não passar com a poeira, o Auto da Compadecida.

 

Camilo Irineu Quartarollo, Escrevente Judiciário, escritor, diagramador, capista, ilustrador, editor e autor do livro A ressurreição de Abayomi, entre outros

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima