Reflexões jurídicas  – TJ/SP suspende o stealthing

Antonio Gonçalves

 

O Brasil tem adotado uma americanização de expressões e palavras sem muita justificativa ou contexto. Tal medida, que não é de hoje, resulta na popularização da língua estrangeira no vernáculo nacional, com resultado minimamente estranho, como se não houvesse, em português, uma palavra ou expressão para o termo em inglês. No Direito sua adoção tem sido frequente: stalking, Deep fake, Deep nude, Fake News e hoje destacaremos o uso “abrasileirado” da palavra stealthing. E do que se trata e qual a relevância?

O Governo do Estado de São Paulo, através de uma liminar, realizava abortos legais nos casos de stealthing, isto é, prática na qual o homem retira o preservativo durante a relação sexual sem o consentimento da parceira e ela engravida.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, através de decisão da 13ª Câmara de Direito Público, suspendeu a referida liminar. Até então, o ato era considerado violação sexual mediante fraude, o que enseja uma pena de reclusão entre dois a seis anos. Ademais, por conta da liminar, havia a obrigação do Estado de São Paulo em realizar o aborto legal.

Importante destacar que o crime de stealthing não existe no ordenamento jurídico brasileiro e sua adoção é aplicada por analogia e o dispositivo mais similar à conduta é o previsto no artigo 215 do Código Penal, a violação sexual mediante fraude.

Se você nunca ouvira falar do crime e das penalidades é porque há uma resistência sobre o assunto. As próprias vítimas têm dificuldades em admitir sua ocorrência e consequências.

O tema é pouco difundido e tem relutância das próprias vítimas em proceder com a denúncia. Em uma pesquisa que ouviu três mil vítimas (2.275 mulheres e 601 homens), com a curiosidade de que todas foram violentadas por homens, e, em 10% dos casos, o agressor era o próprio marido.

Durante um relacionamento, seja período de conhecimento sem adoção de um termo “fixo” (ficante, rolo, lance etc.), namoro, noivado, união estável ou casamento o parceiro, no ato da relação sexual, usa preservativo e, durante a mesma, por qualquer motivo alheio ao conhecimento da parceira, resolve retirar a proteção e, por conseguinte, assume o risco do resultado.

Se há o acordo entre as partes não há que se falar em stealthing, porém, quando somente o homem decide, unilateralmente, um leque de possibilidades colocam a vítima em risco de saúde, pois, há a possibilidade de contrair uma doença sexualmente transmissível, AIDS, além de uma gravidez não planejada ou prevista pelas partes.

A mesma pesquisa também mostrou que o stealthing ocorre com homens como vítimas, claro que nesse caso não há a possibilidade de gravidez, contudo, as doenças sexualmente transmissíveis são uma possibilidade real, quando da ausência do preservativo.

E, desde março desse ano, através da já mencionada liminar, a juíza Luiza Barros Rozas Verotti ordenara que o Centro de Referência da Saúde da Mulher realizasse abortos legais em casos de gravidez após stealthing.

Nesse momento, um passo atrás para um questionamento importante: a magistrada obrigou o Estado de São Paulo a realizar o aborto legal equiparando o stealthing a um estupro, portanto, autorizando o procedimento em conformidade com o artigo 128, II do Código Penal. Porém, o tema é controverso, afinal, a relação com conjunção carnal se fora consentida não há a conformação do estupro, portanto, o aborto não seria considerado como dentro das hipóteses legais previstas pela legislação brasileira.

Eis um dos fundamentos para a revogação da liminar pelo Tribunal de Justiça. Se há o entendimento de que o stealthing pode ser considerado como uma das possibilidades de aborto, então, há a necessidade do Congresso Nacional tratar do tema e promulgar uma Lei sobre isso.

Uma liminar não pode inserir uma figura jurídica em um entendimento por analogia cuja premissa essencial, a saber: o uso da ameaça e da força está ausente. O stealthing não tem elementos para ser comparado ou equiparado ao estupro. Parece mais adequado, de fato, a violação sexual mediante fraude. E essa figura jurídica não é prevista para os casos de abortos legais.

Por fim, mas não menos importante, temos a questão da desinformação. Quantas vítimas foram realizar a denúncia com a formalização do boletim de ocorrência e o concernente exame de corpo de delito? Afinal, sem a comprovação dos vestígios de sêmen como atestar que houve o crime e que, efetivamente, o preservativo fora descartado?

A desinformação atua negativamente, porque são poucas as vítimas que são informadas ou sabem disso. Em alguns casos, em uma relação casual, nem o contato ou maiores informações do agressor possuem. Com isso, há o desestímulo da denúncia.

O stealthing é uma realidade, porém, sua ocorrência, para o ordenamento jurídico brasileiro, ainda é inédita e pouco conhecida. Enquanto o legislador não o inserir na realidade jurídica, caberá o incentivo a realização de campanhas educacionais para estimular as vítimas a denunciarem e a conformar uma estatística robusta para validar sua inserção na legislação nacional, o que nada obsta um debate no Congresso Nacional a qualquer momento.

 

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Antonio Gonçalves é advogado criminalista. Pós-doutor em Desafios em la post modernidad para los Derechos Humanos y los Derechos Fundamentales pela Universidade de Santiago de Compostela, Pós-Doutor em Ciência da Religião pela PUC/SP, Pós-Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de La Matanza. Doutor e Mestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP, MBA em Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas.

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