Ricardo Caruso
Mineiros da Karowe, no nordeste de Botsuana, acabam de somar mais um capítulo à crônica dos diamantes raros: um bruto de 37,41 quilates que exibe, de forma quase didática, duas metades distintas — uma rosa e outra incolor — separadas por uma fronteira nítida.
A pedra, com 24,3 milímetros de comprimento, foi analisada pelo Gemological Institute of America (GIA), que classificou o achado como “extraordinário” pelo peso acima da média e pela dicromia natural praticamente inédita em cristais dessa magnitude.
Como nasce um diamante rosa
Ao contrário de outras cores — azuis por boro, amarelos por nitrogênio — o rosa não resulta de impurezas químicas, mas de defeitos estruturais na rede cristalina, causados por estresses tectônicos a grandes profundidades.
Em termos simples: o cristal foi “amassado” pela Terra sem se quebrar. Se a deformação é intensa demais, o resultado tende ao marrom; quando ocorre na medida exata, surge o rosa delicado e raro.
No caso da pedra de Karowe, os gemólogos do GIA apontam um processo em duas etapas. Primeiro, formou-se um núcleo que, posteriormente, sofreu deformação plástica, adquirindo a tonalidade rosada. Depois, em evento geológico distinto, a cristalização prosseguiu de modo estável, gerando a metade incolor. A transição entre as zonas é tão precisa que se tornou objeto de fotomicrografias científicas.
Por que isso é tão raro
Diamantes com dupla coloração natural já foram encontrados antes, mas quase sempre são minúsculos, com no máximo 2 quilates. Ver o mesmo fenômeno em 37,41 ct eleva o caso a uma exceção geológica e gemológica.
Para a ciência, é uma janela para entender eventos tectônicos sucessivos; para o mercado, é um ativo de raridade narrativa, capaz de alcançar valores milionários quando for lapidado e apresentado ao público.
Karowe: a mina dos superlativos
A mina Karowe, inaugurada em 2012 e operada pela Lucara Diamond Corp., tornou-se referência mundial em brutos de grande porte e pureza tipo IIa.
Nos últimos anos, dali vieram o Motswedi (2.488 ct), considerado o segundo maior diamante já recuperado, e o Boitumelo, um rosa de 62,7 ct que encantou o mercado em 2021.
Esses antecedentes explicam por que Botsuana, hoje, é uma das nações que mais contribuem para o estudo e a economia mundial dos diamantes — combinando tecnologia de mineração, governança e rastreabilidade.
A ciência por trás do brilho
O GIA explica que o diamante de Botsuana se formou a mais de 160 quilômetros de profundidade, em condições extremas de pressão e temperatura.
Ao longo de milhões de anos, movimentos de placas e formação de montanhas exerceram forças suficientes para “dobrar” o retículo cristalino, gerando a coloração rosada.
Esse fenômeno geológico, conhecido como deformação plástica, é um dos mais difíceis de reproduzir artificialmente — razão pela qual diamantes rosas naturais estão entre as gemas mais valorizadas do planeta.
Mercado e expectativas
A precificação dessa peça dependerá de três variáveis principais:
- Estabilidade das zonas de cor após o corte e o polimento;
- Rendimento gemológico, ou seja, quantos quilates lapidados podem ser obtidos sem destruir a transição visual;
- Narrativa comercial, isto é, o apelo de se manter uma gema única que mostre, na mesma face, dois mundos minerais distintos.
O dilema dos lapidários será decidir entre preservar o contraste original — criando uma peça de museu — ou maximizar o rendimento em quilates, separando as zonas e perdendo a raridade.
Botsuana e o protagonismo africano
A descoberta reforça o papel de Botsuana como líder global em mineração ética e transparente, à frente de países como Angola e República Democrática do Congo em governança e reinvestimento social.
Com esse novo achado, o país se consolida não apenas como fornecedor, mas como referência científica e tecnológica na área gemológica, com laboratórios próprios e parceria direta com o GIA.
A joia da geologia moderna
Para a comunidade científica, a gema é uma cápsula do tempo: registra, em poucos centímetros, dois capítulos distintos da história da Terra.
Para o mercado, é um lembrete de que, mesmo após séculos de exploração, o subsolo africano ainda guarda surpresas capazes de redefinir a noção de raridade.
BIBLIOGRAFIA
– Gemological Institute of America (GIA). Bicolor Natural Diamond from Botswana – Technical Note, outubro/2025.
– Live Science. Rare half-pink, half-colorless diamond discovered in Botswana, 23 out. 2025.
– Lucara Diamond Corp. Karowe Mine Discoveries: Motswedi (2019) and Boitumelo (2021).
– Curtin University, Luc Doucet. Structural Deformation and Color Formation in Natural Diamonds, Journal of Geology, 2024.
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Ricardo Caruso, advogado, engenheiro, joalheiro e consultor em ativos físicos;
articulista de A Tribuna Piracicabana, autor de “Crônicas Lapidadas: uma coletânea sobre gemas, ouro e o mundo em transformação”