Armando Alexandre dos Santos
A História do Brasil, do Pe. Gabriel M. Galanti, é sem dúvida a obra historiográfica que registra mais pormenorizadamente os acontecimentos do período chamado colonial da nossa história. Sem padecer do sinistro reducionismo economicista dos historiadores do século XX, tão a fundo influenciados pelo marxismo, o Pe. Galanti valorizou adequadamente a obra missionária portuguesa no Brasil. Sua obra, desse ponto de vista, é minuciosa e muito bem documentada.
Por certo não foi intenção dele produzir obra original que apresentasse uma nova interpretação da História do Brasil. Seu escopo foi bem mais modesto e se moldava estritamente a suas preocupações como educador e mestre. A História do Brasil foi composta com esmero e seriedade tão-só para proveito e benefício dos seus alunos – e por extensão aos alunos que em todo o Brasil eram educados nas escolas públicas que, nos primeiros anos do novo regime, as autoridades republicanas timbraram em disseminar por todos os Estados. Galanti limitou-se quase exclusivamente à exposição dos fatos, deixando que eles falassem por si com a forma de eloquência que lhes é própria. Na exposição dos fatos, sempre se manteve preciso e consciencioso. Seguiu à risca, como princípio geral, a máxima do romano Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) acerca da História, máxima essa que o Papa Leão XIII lembrou aos historiadores de todas as crenças quando, no início de seu pontificado, lhes abriu os arquivos do Vaticano: “A primeira lei da História é nada ousar dizer que seja falso, e, em seguida, nada deixar de dizer que seja verdade, de tal modo que não haja parcialidade favorável ou maliciosa no que se escreve.” (De orator. II, 15)
Vivendo em um século em que, por influência do positivismo, se valorizava até excessivamente a importância dos documentos escritos, Galanti se esmerou em sustentar cada uma das suas afirmações em fontes que cita. Não são muito frequentes suas referências a fontes primárias – pois, residindo inicialmente em Itu, e depois em Nova Friburgo durante a redação da História do Brasil, a elas não tinha facilidade de acesso -, mas as obras publicadas por autores tidos e havidos como sérios, como por exemplo Varnhagen e Southey, foram por ele conscienciosamente estudadas e, quando julgou necessário, criticadas.
O positivismo foi a ideologia predominante e quase hegemônica desde meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX. Era uma crença de caráter cientificista, determinista e evolucionista, segundo a qual a História devia ser entendida como um traçado linear lógico, perfeitamente pré-determinado e, portanto, previsível, o qual somente podia e devia ser estudado cientificamente a partir de fontes oficiais e escritas. O que não fosse oficial e não fosse escrito devia ser relegado como informação não confiável e, portanto, não utilizável por um historiador sério, metódico e científico. Foi nesse período que se generalizou a expressão “pré-história” – a qual atualmente se considera bastante preconceituosa – para designar os tempos anteriores à escrita.
Karl Marx (1818-1883), que viveu na fase de formação e consolidação dessa mentalidade, foi por ela fortemente influenciado. É por isso que o marxismo lhe pagou pesado tributo, traçando leis que supunha serem inelutáveis para o desenvolvimento das sociedades.
A mentalidade cientificista da época influenciou profundamente a Historiografia, e um dos efeitos dessa influência é que os historiadores de inspiração positivista sobrevalorizaram o documento escrito e oficial, único (ou quase único) elemento considerado por eles válido para uma análise histórica científica. “Scripta manent, verba volant” (as coisas escritas permanecem, enquanto as palavras voam), pensava-se. O francês Fustel de Coulanges (1830-1899) é autor de uma frase profundamente verdadeira ou profundamente falsa, dependendo da interpretação que se lhe dê: “Pas de documents, pas d’Histoire”(sem documentos não há história). É verdadeira, se entendermos documentos em sentido amplo, como entendemos hoje; é falsa se considerarmos documentos apenas em sentido estrito, ou seja, apenas documentos escritos e oficiais, como geralmente se entendia no tempo dele.
No século XX, por efeito da atuação da chamada Escola dos Annales, ampliou-se muito a noção de documento utilizável por um historiador. Desse ponto de vista, é preciso dizer que o Pe. Galanti foi até certo ponto um precursor, pois sinalizava a utilização de fontes não escritas. Com efeito, em outra obra, assim exprimiu ele o conceito de fontes históricas: “São todos os monumentos e documentos pelos quais podemos conseguir o conhecimento de algum fato histórico. Dividem-se em duas categorias, a saber: diretas e indiretas. Pertencem às diretas todos os documentos escritos com o intuito de transmitir à posteridade os fatos memoráveis. As indiretas são todos os monumentos ou documentos que, examinados com o auxílio da crítica, nos revelam alguma notícia acerca da vida do homem. Denominam-se também subsídios da história. São a geografia, a linguística, as estátuas, as pinturas e, em geral, as obras de arte. Pertencem também às fontes históricas as tradições orais, contanto que reúnam em si todos os caracteres exigidos pela crítica.” (Compendio de Historia Universal. São Paulo: Tip. Siqueira, 1932, 6ª. edição, p. 7-8)
(*) Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.
Frase a destacar: “No século XX, por efeito da atuação da chamada Escola dos Annales, ampliou-se muito a noção de documento utilizável por um historiador.”