Espelho invisível

Juliana Camargo Gonçalves

 

Às vezes eu me pego sendo uma narradora observadora de mim mesma. Não sei bem quando isso começou, mas sei exatamente quais são os gatilhos. Lugares, cheiros e pessoas que me transportam para outras dimensões e me fazem pensar na vida como se eu fosse minha própria protagonista. E então, numa tentativa quase que desesperada, a minha mente começa a narrar para mim mesma como essa menina-mulher — eu — tem sorte por estar vivendo tudo isso.

É quase como se eu me transportasse da minha própria vida para me assistir. Às vezes, eu sinto que vivo duas vidas ao mesmo tempo. Uma que acontece — feita de gestos, risadas, pequenas distrações — e outra que me observa de longe, em silêncio.

Essa segunda versão de mim é paciente, quase etérea. Fica ali, sentada num canto qualquer da memória, anotando mentalmente cada detalhe: o jeito como seguro o copo de café, a pressa disfarçada quando quero parecer tranquila, o riso que vem antes da fala. Enquanto uma parte de mim vive, a outra interpreta. Escreve sem papel, narra sem voz, transforma os instantes em enredo.

E eu me pergunto se todo mundo tem dentro de si uma narradora escondida — alguém que observa para não se perder. Talvez sim. Talvez seja o jeito que encontramos de dar sentido às coisas antes que elas se desfaçam no tempo.

Às vezes essa voz me irrita, como se ela não me deixasse viver sem pensar. Ela aparece nas horas em que eu só queria sentir, mas ela quer entender. Quer transformar o agora em memória antes mesmo que ele termine.

E, mesmo assim, não consigo calá-la.

É ela quem me salva quando o mundo pesa — quando o coração aperta, quando a vida parece um erro de percurso.

Essa narradora que mora em mim recolhe o que sobra e escreve um sentido. Ela costura os pedaços do que não sei explicar. Já tentei ser só personagem, deixar que a vida me leve sem refletir tanto. Mas é impossível.

A mulher que narra está sempre por perto. Às vezes, sentada ao meu lado no ônibus, olhando pela janela e descrevendo o pôr do sol como se fosse a primeira vez. Às vezes, no banho, transformando o vapor em metáfora. Às vezes, deitada comigo, tentando entender o que sinto e por quê.

E eu percebo que, no fundo, essas duas — a que vive e a que narra — não são inimigas. São complementares. Uma existe porque a outra precisa entender. A que vive dá matéria à história; a que narra dá sentido. Juntas, elas me fazem inteira.

Ser eu é um exercício constante de tradução: entre o que sinto e o que sei dizer, entre o que acontece e o que eu permito permanecer. Viver, para mim, é escrever com o corpo e revisar com a alma.

E talvez seja isso o que chamam de amadurecer — quando a gente aprende que não precisa escolher entre ser a personagem e ser a autora. Pode ser as duas. Pode viver e, ao mesmo tempo, narrar a beleza e o caos de existir.

No fim, acho que continuo me observando — não por vaidade, mas por amor. Porque há algo de sagrado em se enxergar viva, mesmo quando a vida parece pequena.

E talvez, só talvez, esse espelho invisível que me acompanha seja a prova de que continuo aqui — tentando, de todas as formas, me entender enquanto me escrevo.

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Juliana Camargo Gonçalves, pesquisadora e graduada em Letras português e francês pela Universidade de São Paulo (USP)

 

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