Amor, Meu Grande Amor

Ari Junior

 

“Poeta é um fingidor, que finge a dor, e quem sofre é o leitor” – Ângela Rô Rô

Há canções que são atemporais. Não porque o tempo lhes poupou as rugas, mas porque nasceram com a alma madura, já prontas e formadas. “Amor, Meu Grande Amor”, composta por Ângela Rô Rô e Ana Terra, é uma dessas joias raras que atravessam décadas sem perder o brilho, e talvez até ganhem mais fulgor à medida que o mundo se torna mais cínico e menos disposto a pensar de forma crítica ou mesmo romântica.

Ângela Rô Rô, que nos deixou aos 75 anos semana passada, foi uma dessas artistas que não se moldaram ao mercado, mesmo pagando o preço por isso. Ela não cantava para agradar, cantava para existir. E existia com uma intensidade que poucos ousaram acompanhar. Sua voz rouca, sua postura irreverente e sua entrega visceral fizeram dela uma figura única na música brasileira. “Amor, Meu Grande Amor”, lançada em seu disco de estreia em 1979, é o retrato mais delicado e ao mesmo tempo mais corajoso dessa entrega.

A canção começa com um pedido quase infantil: “Não chegue na hora marcada”. É como se o amor, para ser verdadeiro, precisasse ser espontâneo, imprevisível, fora do script. Ângela e Ana Terra nos convidam a abandonar os protocolos e a nos lançar no abismo da paixão sem mapa, sem bússola, sem GPS emocional. “Me veja nos seus olhos, na minha cara lavada”. Eis aí uma imagem de vulnerabilidade que dispensa maquiagem, filtros e defesas. Quantos de nós somos corajosos de pular de cabeça assim num relacionamento? Quantos de nós deixamos os pudores do lado de fora do peito e da mente para sentir o gosto original de se perder numa paixão?

A letra segue como uma espécie de oração laica, onde o amor é invocado não como ideal, mas como presença concreta, imperfeita, mas intensa. “Sem nome ou sobrenome, sem sentir o que não sente” nesse verso há uma recusa da fantasia e uma celebração do que é real, mesmo que não seja romântico no sentido convencional. O amor, para Ângela, não é um conto de fadas. É um encontro entre dois seres que se reconhecem naquilo que são, e não naquilo que gostariam de ser.

Talvez o verso mais enigmático e mais citado da canção seja “A vida do teu filho / Desde o fim até o começo”. Muitos tentaram decifrar esse trecho, atribuindo-lhe significados místicos, biográficos ou poéticos. A própria Ângela, com seu humor característico, dizia: “Não sei, pergunta pra Ana Terra”. Isso é muito comum entre compositores, de não dizer, às vezes nem se lembrar ou mesmo deixar ao gosto do ouvinte sua interpretação única. E talvez essa seja a chave: a música não precisa ser explicada. Ela precisa ser sentida. Esse verso, com sua inversão temporal, parece sugerir que o amor verdadeiro é aquele que conhece todas as versões do outro: do nascimento à morte, da dor à alegria, do fracasso à redenção. É um amor que não se limita ao presente, mas que abraça o passado e o futuro com a mesma ternura.

Décadas depois, Frejat regravaria “Amor, Meu Grande Amor” com a mesma reverência que se tem diante de um clássico. Sua versão, mais rock, mais seca, menos blues, trouxe a canção para uma nova geração, sem tirar dela a profundidade. Ao contrário: ao colocar sua voz sobre os versos de Ângela, Frejat ajudou a eternizar a música, provando que ela não pertence a uma época, mas a uma emoção universal. A canção, que já era um hino para os corações inquietos, ganhou nova vida. E com isso, Ângela Rô Rô foi alçada ao panteão dos grandes artistas nacionais. Não apenas pela força da composição, mas pela coragem de cantar o amor sem filtros, sem concessões, sem medo.

Ângela foi uma das primeiras artistas brasileiras a assumir publicamente sua homossexualidade, num tempo em que isso era quase um ato suicida para a carreira. E mesmo assim, ela não recuou. Cantou suas dores, seus amores, suas desilusões com uma sinceridade que até hoje parece revolucionária. “Amor, Meu Grande Amor” não é apenas uma canção de amor, é uma declaração de liberdade. Ao longo da vida, Rô Rô enfrentou batalhas pessoais, problemas de saúde, dificuldades financeiras. Mas nunca deixou de ser artista. Nunca deixou de ser verdadeira. E talvez por isso sua obra tenha resistido ao tempo com tanta dignidade. Porque há algo de eterno naquilo que é genuíno.

Hoje, ao revisitarmos “Amor, Meu Grande Amor”, não estamos apenas ouvindo a música. Estamos reencontrando uma mulher que ousou ser ela mesma, que transformou suas cicatrizes em melodia. Ângela Rô Rô não foi apenas uma cantora, foi também uma cronista da alma. E se há algo que podemos aprender com ela, é que o amor não precisa ser perfeito, precisa ser verdadeiro. E isso é mais raro do que parece.

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Ari Junior, escritor, cronista e supervisor de compras

 

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