Partidos políticos e suas ideologias

Ronaldo Castilho

 

A democracia moderna, em sua essência, é sustentada pelo pluralismo político. Os partidos representam não apenas instrumentos de organização eleitoral, mas a materialização de ideologias, correntes de pensamento e visões distintas sobre o que deve ser o destino de uma nação. No entanto, quando a diversidade legítima se transforma em divisão radical e sectária, instala-se a polarização, fenômeno que fragiliza instituições, compromete o diálogo e gera riscos concretos à convivência democrática. No Brasil, o cenário político dos últimos anos é um retrato dessa tensão: partidos que deveriam representar ideias se transformaram em bandeiras de confronto, muitas vezes mais preocupados em derrotar o “inimigo” do que em propor soluções coletivas. Às vésperas das eleições de 2026, cabe refletir sobre o papel dos partidos, os perigos da polarização e a necessidade de resgatar o espaço do debate equilibrado.

A história do pensamento político mostra que os partidos sempre foram vistos como mecanismos necessários, mas também como potenciais fontes de divisão. Alexis de Tocqueville, ao analisar a democracia norte-americana no século XIX, observou que os partidos eram inevitáveis, mas que podiam se diferenciar entre os “grandes”, voltados a princípios e questões fundamentais, e os “pequenos”, focados apenas em disputas circunstanciais. Para Tocqueville, a vitalidade democrática dependia justamente da capacidade dos partidos de manterem-se próximos das necessidades sociais, sem degenerar em meras facções hostis. John Stuart Mill, outro pensador do liberalismo clássico, advertiu que o pluralismo de ideias é vital, mas só é fértil quando há liberdade de expressão e disposição para ouvir o outro lado. No Brasil contemporâneo, a polarização ameaça justamente esse ponto: não se discute para convencer, mas para aniquilar.

É inegável que a política brasileira sempre foi marcada por disputas intensas. Desde o Império, as divergências entre conservadores e liberais moldaram os primeiros traços partidários do país. Já na República Velha, o coronelismo e o domínio de oligarquias regionais fragilizaram a ideia de partidos nacionais com projetos de Estado. No século XX, momentos de democracia e autoritarismo se alternaram, e os partidos, em diversos momentos, foram extintos ou recriados artificialmente. A redemocratização de 1985 trouxe um novo fôlego ao pluripartidarismo, mas também abriu espaço para uma proliferação desordenada de siglas, muitas delas sem clareza ideológica. Isso contribuiu para o cenário atual, em que a polarização não se dá entre programas partidários bem definidos, mas entre lideranças carismáticas que, muitas vezes, sobrepõem suas figuras às próprias legendas.

A polarização brasileira recente foi marcada, sobretudo, pela dicotomia entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e forças políticas de centro-direita e direita, que culminaram na ascensão de Jair Bolsonaro em 2018. Desde então, consolidou-se uma lógica de confronto que se expressa não apenas nas urnas, mas no cotidiano das famílias, dos espaços de trabalho e até das igrejas. Amigos e parentes se afastaram por divergências políticas; redes sociais se transformaram em campos de batalha ideológica; e qualquer tentativa de neutralidade passou a ser interpretada como covardia ou cumplicidade com o “outro lado”. Como já alertava Hannah Arendt, ao refletir sobre os regimes totalitários, o maior perigo da política é quando o adversário passa a ser tratado como inimigo absoluto, e não como um concorrente legítimo em um jogo democrático.

O Brasil, ao entrar em 2026, carrega as marcas desse processo. A polarização não é apenas um embate de ideias, mas um fenômeno cultural que divide narrativas, versões da história e até interpretações de fatos concretos. Enquanto setores progressistas defendem a ampliação de direitos sociais, o combate às desigualdades e a intervenção estatal como ferramenta de justiça, setores conservadores insistem na defesa de valores tradicionais, da ordem, da família e do mercado como espaço de liberdade. Essas visões poderiam conviver e gerar sínteses produtivas. Contudo, transformadas em trincheiras, têm paralisado a capacidade do país de encontrar consensos mínimos. Como observou Norberto Bobbio, em sua análise sobre esquerda e direita, as diferenças ideológicas são legítimas, mas o que fortalece a democracia é a disposição para reconhecer a legitimidade do outro e a inevitabilidade do conflito moderado.

O perigo da polarização é duplo. No curto prazo, ela impede o avanço de pautas urgentes, pois cada lado prefere impedir que o outro tenha sucesso a negociar soluções de interesse coletivo. No longo prazo, fragiliza a confiança da população nas instituições democráticas, pois transmite a sensação de que a política é apenas um ringue para disputas intermináveis. Isso alimenta o discurso antipolítico, que pode abrir caminho para aventureiros autoritários, dispostos a prometer soluções rápidas sem os freios e contrapesos do sistema democrático. A história mostra exemplos trágicos nesse sentido: a ascensão de regimes totalitários no século XX, como o fascismo na Itália ou o nazismo na Alemanha, foi antecedida por processos de polarização intensa, que corroeram a confiança na política tradicional.

Diante desse quadro, as eleições de 2026 se apresentam como uma oportunidade decisiva. O Brasil terá a chance de decidir se seguirá aprofundando a lógica do confronto ou se buscará construir pontes, valorizando partidos que apresentem projetos consistentes e não apenas discursos inflamados. Será um momento para avaliar se os partidos políticos conseguirão se reinventar, resgatando suas raízes ideológicas e apresentando programas claros em áreas cruciais como educação, saúde, meio ambiente, segurança e desenvolvimento econômico. Também será o teste da maturidade da sociedade brasileira: estaremos preparados para ouvir propostas diferentes sem transformá-las em ofensas pessoais?

A opinião de diversos pensadores ajuda a refletir sobre esse dilema. Karl Popper, ao propor a ideia de “sociedade aberta”, defendia que a democracia se fortalece quando as instituições permitem a alternância de poder sem rupturas violentas. Para ele, o essencial não é quem governa, mas a possibilidade de retirar governos ruins sem derramamento de sangue. Já Maquiavel, em “O Príncipe”, lembrava que a política é o campo da disputa pelo poder, mas essa disputa só se justifica se houver o objetivo maior de manter a estabilidade do Estado. Ambos nos recordam que a política não é apenas espaço de antagonismo, mas também de responsabilidade. A polarização, quando exacerbada, ameaça justamente essa responsabilidade com o todo.

Em 2026, portanto, não estará em jogo apenas quem ocupará a Presidência da República, os governos estaduais e o Legislativo. Estará em disputa o próprio modelo de convivência política que queremos construir. Se a polarização continuar sendo o motor da política nacional, corremos o risco de perder mais uma década em debates estéreis, enquanto problemas estruturais — como a desigualdade, a violência urbana, a crise climática e a precarização do trabalho — seguem sem solução. Mas se conseguirmos superar a lógica de “nós contra eles”, haverá espaço para uma política mais madura, capaz de combinar ideais com pragmatismo, e disputas com diálogo.

Os partidos políticos têm, nesse processo, um papel crucial. Cabe a eles não apenas mobilizar eleitores, mas formar cidadãos, educar politicamente, estimular o debate público e apresentar alternativas reais. Quando se transformam em meros instrumentos de personalidades ou em siglas de aluguel, traem sua função histórica. É hora de resgatar a dimensão programática, de se comprometer com reformas estruturais e de se abrir ao diálogo com diferentes setores da sociedade. A democracia não pede unanimidade, mas requer disposição para construir convergências.

Como lembrava Rui Barbosa, um dos grandes juristas e pensadores políticos brasileiros, “a pior ditadura é a do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”. A frase, muitas vezes mal interpretada, expressa, na verdade, a importância de que cada poder e cada instituição cumpra seu papel sem ultrapassar seus limites. Isso vale também para os partidos: eles não podem pretender ser donos da verdade, mas sim instrumentos de mediação. Quando agem dessa forma, ajudam a fortalecer a democracia e a garantir que a diversidade de ideias se traduza em progresso coletivo.

Em síntese, os partidos políticos e suas ideologias são elementos indispensáveis da democracia, mas sua vitalidade depende de sua capacidade de representar ideias sem degenerar em polarização destrutiva. O Brasil de 2026 está diante de uma encruzilhada histórica: pode aprofundar as divisões e colher os frutos amargos da radicalização, ou pode reencontrar o caminho do diálogo, da pluralidade e da responsabilidade. Cabe à sociedade, aos partidos e às lideranças escolher qual caminho seguir. A política, afinal, é a arte de construir o futuro, e não apenas de repetir os erros do passado.

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Ronaldo Castilho é jornalista, bacharel em Teologia e Ciência Política, com MBA em Gestão Pública com Ênfase em Cidades Inteligentes e pós-graduação em Jornalismo Digital.

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