Felicidade em tempos de imperativo

Lilian dos Santos Lacerda

O Relatório Mundial da Felicidade, publicado anualmente pela ONU, volta a colocar a Finlândia no topo do ranking, seguida por Dinamarca e Islândia. O Brasil aparece na 44ª posição, reforçando o distanciamento entre os discursos sobre bem-estar, qualidade de vida e a realidade cotidiana de grande parte da população. Mais do que medir um estado subjetivo, o relatório evidencia que felicidade está associada não apenas à renda, mas sobretudo à proteção social, igualdade, saúde, educação e segurança.

Essa constatação tensiona a lógica neoliberal, que insiste em reduzir a vida ao consumo, à competição e a meritrocracia. Os países mais bem colocados no ranking compartilham políticas públicas consistentes e menos desigualdade social. Assim, a felicidade, quando tomada em termos coletivos, depende menos do acúmulo privado e mais do cuidado social.

A psicanálise, por sua vez, questiona o próprio estatuto da felicidade como meta absoluta. Freud advertia que o aparelho psíquico não foi programado para garantir o prazer contínuo, mas para administrar o conflito entre desejo e realidade. A felicidade, quando ocorre, é um episódio, cuja a satisfação parcial se inscreve no jogo entre pulsão e renúncia. Lacan retoma essa perspectiva ao afirmar que a felicidade é o que deve ser proposto como termo a toda a busca, por mais ética que seja, mas nunca um destino fixo. O mal-estar é estrutural: habitar uma cultura implica negociar perdas e limitações.

No entanto, a sociedade contemporânea parece intolerante ao sofrimento. O imperativo de felicidade opera como mandamento e, performar estar bem tornou-se quase um dever moral. Redes sociais transformam a alegria em mercadoria; aplicativos prometem bem-estar em poucos cliques; empresas vendem “propósitos” como extensão de jornadas de trabalho exaustivas. Nesse cenário, tristeza e angústia são patologizadas ou ocultadas, quando poderiam servir de bússola para interrogar nossas condições de vida.

Afinal, o que o Relatório Mundial da Felicidade aponta é a necessidade de investir em políticas que mitiguem as desigualdades e ampliem o acesso a saúde, educação e cultura. Ainda que nenhuma engenharia social demonstre capacidade de eliminar completamente a dimensão trágica da existência, a sociedade tem o dever reivindicar o direito de viver com complexidade, onde o desejo, o cuidado e a crítica encontram respiro.

 

 

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Lilian dos Santos Lacerda, psicanalista, pedagoga e artista visual, pesquisa as interseções entre educação, cultura, subjetividade e sociedade

 

 

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