Juliana Previtalli
— Cecília, você está escutando esse barulhinho na porta? — pergunta Lilian.
— Estou. Que estranho… tem alguma coisa do lado de fora! — responde Cecília, a dona da casa, para a irmã. Cecília morava no nono andar do tradicional Edifício Romano, na Rua Prudente de Moraes, em Piracicaba. Resolvem abrir a porta e, surpresas, vêem o bebê de menos de dois anos de Maria José, a vizinha do oitavo andar. A menininha, na verdade eu mesma, Juliana, ao vê-las, pediu:
— Tem cagadinho?
O ano era 1975 e, acostumada com a cozinha da tia Cecília, eu dera um jeito de abrir a porta da minha casa, subira, sozinha, engatinhando, os quase trinta degraus da longa escada, sem patamar, entre o oitavo e o nono andar, reconhecera a porta correta e batera. Eu queria os salgadinhos da tia Cecília.
Todas as mães dos nossos amigos eram chamadas de tias; a tia Cecília era a mais querida. Na casa dela, sempre encontrávamos guloseimas e, na hora do almoço, as crianças queriam comer lá. Gostavam da comida. Tia Cecília costumava colocar a mesa da cozinha no amplo e arejado hall do elevador entre os apartamentos. As outras mães aproveitavam e mandavam travessas de legumes refogados, de saladas e de carnes. As crianças, enjoadas de comer em suas casas, fartavam-se com os almoços da tia Cecília.
Ela teve três filhos: Maurinho, poucos meses mais velho do que eu; Sérgio, da mesma idade de Marcos, meu irmão, e Fernando, da mesma idade de minha irmã mais nova, Marília. Vivia confortavelmente e dispunha de três funcionárias: a mensalista, para cuidar da casa, a cozinheira e a pajem, para auxiliá-la no cuidado com as crianças. As amigas vizinhas reuniam-se nos jardins do edifício para conversar, para fazer aulas de tricô e de crochê e, também, para irem, juntas, às aulas de ginástica na academia. Enrolavam sacos plásticos ao redor da cintura para transpirar e emagrecer. Na volta, quase sempre uma delas convidava para um bolo com café. Tia Cecília queria emagrecer porque depois da gestação do Sérgio, em 1976, ganhara dezessete quilos. Uma amiga recomendou-lhe que fumasse cigarros pois, assim, emagreceria rápido. Aos 26 anos, começara a fumar. Na família, o pai, a mãe, o irmão e o marido — tio Mauro — fumavam. Só a irmã, Lilian, não.
Décadas depois, o tabagismo começaria a cobrar seu preço. Em 2020, tossia muito, sentia falta de ar e, subitamente, sentiu-se sufocar. Fora internada, às pressas, com o diagnóstico de pneumotórax. Sofreu com o dreno que lhe colocaram no lado direito do peito e com a longa permanência hospitalar.
A família Porto mudara-se para a cidade de São Paulo em 1998. Sérgio, profissional de educação física, descobriu que o seu mecânico fazia tratamento para parar de fumar. Levantou as informações e, depois de muita insistência, convenceu a mãe a buscar ajuda na UBS chácara Santo Antônio. As reuniões com os tabagistas aconteciam às quartas-feiras, ao meio-dia. Chegando lá, tia Cecília alertou:
— Eu não sei o que eu estou fazendo aqui. Foi meu filho que mandou eu vir, mas eu não quero parar de fumar.
A doutora Lídia, psiquiatra da unidade, com jeitinho, acolheu-a e convenceu-a a ficar. Cecília gostou tanto, que não faltava às reuniões. Todos os dias, tirava um cigarro de dentro do maço, tomava bupropiona e colava adesivos. Ficaram amigas a ponto de a médica passar seu número de celular. Um dia, temendo uma recaída, ligou. A médica mandou que fosse, a pé, passear no Shopping, perto de sua casa; que subisse e descesse as escadas e não usasse as escadas rolantes; sempre lhe dava dicas, como fazer palitinhos de cenoura e de pepino e beber muita água. Tia Cecília parara de fumar.
Passaram-se quinze anos; tratou dois cânceres: de mama, em 1999, e de tireóide, em 2006, e luta, diariamente, com o enfisema que a debilitou e a emagreceu. Cuida, sozinha, do tio Mauro, cadeirante, vítima de Esclerose Múltipla, mas conta, frequentemente, com a ajuda de Lilian e do cunhado.
Dizem que os mais velhos vivem de lembranças. No dia em que eu os visitei, o tio Mauro quis gravar a nossa entrevista e, também, fez questão de mostrar a Revista Hands — uma publicação editada pelo Instituto de Informação e Suporte em Oncologia — de 2004, época em que tratou o câncer de tireóide, quando Cecília foi entrevistada.
Com esta crônica, publicada em quatro jornais impressos e quatro digitais, terá assunto para muita conversa.
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Juliana Previtalli é médica cardiologista e atende em seu consultório particular. Agendamentos por mensagem para 19 97123-1361