Afeiçoar-se à morte

José Renato Nalini

 

Quão estranha é a criatura que se autoconsidera racional: sabe que vai morrer, assim como nasceu. Mas enquanto saúda o nascimento como acontecimento auspicioso, lamenta a morte como uma desgraça.

Já não era tempo de se acostumar com a partida? Talvez fosse a oportunidade de se tornar menos apegado à matéria, cultivar o intangível, já que todos os bens aqui serão deixados, para sustentar litígios e fazer a alegria dos advogados.

Os antigos já foram superiormente sensatos quanto à necessidade de contínuo aprendizado a se despedir da vida. Um dos exemplos históricos é o Imperador Marco Aurélio, educado por outro homem de virtudes, Antonino Pio. Pensou e escreveu bastante, deixando páginas que servem para a nossa reflexão, como as que seguem: “Não amaldiçoes a morte: acolhe-a, porque ela é uma fatalidade da natureza. A dissolução do nosso ser é um fato tão natural como a mocidade, a velhice, o crescimento, a plena maturação. Se tu tens necessidade de uma reflexão especial, que te torne benévolo para com a morte, não tens ais que considerar aquilo de que ela se vai separar e o meio moral com que a tua alma se não imiscui. Não te zangues com eles; deves amá-los e suportá-los com bondade. Não são pessoas com os teus sentimentos que tu abandonas: o motivo que poderia ligar-nos à vida seria a felicidade de nos encontrarmos com homens da nossa opinião. Mas à hora presente, tu vês a tua íntima dor, a ponto de exclamares: “Oh! Morte! Não tardes para que eu me não vá também esquecer”.

Ninguém deve se iludir com a própria memória depois do falecimento. Por mais brilhante seja a lembrança da trajetória, plena de sucessos e de glórias, tudo se olvidará dentro em pouco. Pode-se exclamar, durante curtíssimo período: “Era um homem de bem; era um sábio! Dir-se-á. O que não impedirá tantos outros de exclamar: “Até que enfim estamos livres do pedagogo, respiremos! Ele não era mau para ninguém, mas no fundo não era da nossa opinião”.

É preciso estar preparado, pois ninguém sabe o dia, nem a hora. “No leito da morte, que esta reflexão te faça deixar a fida mais facilmente: “Eu saio desta vida onde os meus companheiros de viagem, por quem tanto lutei, fiz tantos votos, sofri tanto, desejam que eu desapareça, esperando que a minha morte os deixe à vontade. Que motivo nos faria desejar ficar mais tempo no mundo?”.

Quanto mais autoridade, poder, prestígio e sucesso a pessoa obtém, mais inimigos gratuitos ela conquista. Ainda assim, não se deve cultivar ressentimento, nem desgosto. Marco Aurélio não se enganava com os seus contemporâneos, que o bajulavam tanto: “Não mostres, ao partir, menos benevolência; conserva para com os outros o teu caráter habitual. Fica afetivo, indulgente, doce e não tenhas o ar de um homem que é solicitado para se ir embora. Foi a natureza que formou a tua ligação com eles. Ei-la rota, rompida. Pois bem, adeus amigos, eu vou sem que seja preciso empregar a força para me arrancar do meio de vós, porque esta separação é conforme com a natureza”.

Estar pronto para partir é o máximo da sensatez. Por isso mesmo, numa nau de insensatos, são raros os que se mostram preparados. Sair mansamente do mundo, com tranquilidade e sem reagir, é um exercício espiritual que deveríamos fazer diariamente, sem tristeza ou melancolia.

O primeiro a ser persuadido de que a morte não é uma injustiça, mas algo natural e obrigatório para todos, é o próprio ego, tão pretensioso e vinculado ao supérfluo, ao acessório, ao acidental.

Marco Aurélio ensinou a absolver a Providência e tentou provar que os humanos devem ficar satisfeitos por morrerem. “O tempo que dura a vida do homem não é senão um ponto. O seu ser está num fluxo perpétuo. As suas sensações são obscuras. O seu corpo, composto de vários elementos, tende à corrupção. A sua alma é um turbilhão. O seu destino, enigma insolúvel. Numa palavra, tudo o que respeita ao corpo é rio que corre. Tudo o que diz respeito à alma é fumo e sonho. A vida é um combate em país estranho. A fama póstuma, o olvido. Quem nos pode servir de guia? Só uma coisa: a filosofia”.

A filosofia nos faz mais fortes do que o prazer ou a dor. Nos faz aceitar “os acontecimentos e a sorte, como emanações da fonte donde vem, enfim esperando com bom humor a morte, simples dissolução dos elementos de que se compõem os seres vivos… Essa mudança é conforme com as leis da natureza e nada é mau quando conforme com a natureza”.

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José Renato Nalini é Diretor-Geral da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove e Secretário-Geral da Academia Paulista de Letras

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