O Projeto de Lei que regulamenta as condições de despejo de famílias de ocupações irregulares em Piracicaba despertou algumas discussões, em especial depois que o Executivo Municipal vetou a integralidade do referido projeto sob a alegação de inconstitucionalidade.
Toda essa questão merece algumas considerações.
De fato, a defesa do veto por parte do Executivo inicia-se com a alegação de que a aprovação de tal Projeto de Lei representaria um risco à sociedade, na medida em que estaria estimulando novas ocupações. Ora, essa afirmação é perfeitamente gratuita, e não encontra amparo algum na realidade. Dizer que qualquer ação em benefício da população estimula novas irregularidades não passa de uma ilação, nunca confirmada na prática.
Essa alegação apenas reforça a suspeita de que o veto do Executivo não se deve a razões que possam ser consideradas juridicamente sólidas, mas apenas tenta justificar, por vias tortas, o velho hábito da aporofobia – o horror aos pobres – lamentavelmente tão presente na sociedade brasileira, e do qual não está isento o próprio Estado.
O veto total, baseado na suposta ingerência do Legislativo na esfera do Executivo, tampouco de sustenta, pois a maior parte das ações previstas no Projeto de Lei não oneram o Poder Público, constituindo obrigações previstas na própria Lei Orgânica. Exemplos disso são a mediação do conflito, o apoio social, o concurso da Defensoria e da Defesa Civil.
O que o Executivo obtém com o veto total do Projeto de Lei é a continuidade da ausência de qualquer possibilidade de diálogo, atitude que em nada contribui para construir uma visão equilibrada de sociedade e de cidade.
Ademais, o Projeto de Lei distingue ações emergenciais das ações destinadas a sanar os problemas advindos do despejo. Não é cabível argumentar que a Prefeitura não dispõe de recursos para emergências. Apenas a Prefeitura não considera emergencial o drama de algumas centenas de famílias despejadas, sem nenhum recurso ou destino, nas ruas. É o caso de se perguntar como o Executivo reagiria, caso a emergência fosse devida a alguma catástrofe natural, do tipo, por exemplo, que assistimos no início do ano no litoral paulista.
Ou a tipificação de “situação de emergência” se mede pela causa, mas não pela consequência?
Seria no máximo cabível um veto parcial do Projeto de Lei, e apenas dia artigos que, de fato, ocasionariam despesas extraordinárias. A alegação de que o socorro às famílias representaria gastos não previstos no Orçamento municipal não faz sentido, uma vez que no próprio Plano Habitacional do Município está explicitamente prevista a modalidade de “aluguel social” em casos de urgente necessidade pública.
Mesmo assim, pode-se questionar o caráter extraordinário dessas despesas, visto que ele decorre precisamente da incúria do Executivo em administrar a política habitacional do Município, que vem sendo, há décadas, caracterizada pelo abandono e por ações erráticas, deixando a população em estado de constante insegurança.
Finalmente, é preciso questionarmos o porquê de as ocupações de glebas baldias ser tratado como crime, recebendo o tratamento equivalente a “punição exemplar”, em que famílias – não importando sexo, idade ou condição – são agredidas física e moralmente, como se de temíveis criminosos se tratasse.
A esse respeito, são contundentes as palavras dos juristas Fernando Hoffmam e Pedro Victor dos Santos Witschoreck, quando afirmam que nesse contexto, “não adquire necessariamente o status de delinquente aquele que realizou determinada conduta ilícita. Por isso cria-se um estigma por parte das atividades da polícia e dos demais órgãos de acusação pública e juízes, que etiquetam determinados indivíduos que a sociedade compreende como delinquentes. Diante desse raciocínio, verifica-se que não é necessariamente delinquente aquele que cometeu alguma prática delitiva, mas aquele que pelas condições socioeconômicas encontra-se em vulnerabilidade em razão dos reais interesses da sociedade dominante.”
Constrói-se assim uma diferença entre os cidadãos (portadores de direitos) e os inimigos (perigosos para a sociedade), os quais são “merecedores” de medidas que vão muito além dos limites jurídicos. Afirmam Hoffmam e Witschoreck que “a essência do tratamento diferenciado que se atribui ao “inimigo”, assim considerado, consiste em que o direito lhe nega sua condição humana. Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho.”
É essa a sociedade que estamos tentando construir?
Coletivo Habitação e Urbanismo