Sergio Oliveira Moraes
Peço desculpas, dona Helena. Este texto era para ser só seu. Aí, a notícia – de 26 de março, caso “Americanas” – da primeira audiência de uma comissão do Senado. Um caso que diz respeito também ao senhor J.P. Lemann, da Fundação que citei em artigo anterior neste matutino: “Torne-se um milionário”. A senhora, de Santos, não deve ter lido. Coisa grossa, dona Helena. Começou com a denúncia de uma “inconsistência fiscal” de 20 bilhões de reais, agora chega a 43 bi.
O caso “Americanas” não me desviaria do texto-homenagem à senhora se a Fundação não fosse uma das envolvidas com educação, com o Novo Ensino Médio. Preocupo-me, dona Helena. Mas na véspera da tal audiência, nova tragédia me desvia. É preciso falar sobre Elizabeth Tenreiro, 71 anos, professora de Ciências assassinada por um adolescente de treze anos.
A senhora compreende né, dona Helena? A senhora tem 98 anos, dos últimos descendentes diretos de africanos escravizados, trabalhou desde menina – a senhora compreende. Penso sobe sua fala: “a vida é muito curta para gastar dormindo. Por isso, nunca me deito durante o dia”. E se a professora Elizabeth, só naquele dia, tivesse esquecido que a vida é curta, ficado um bocadinho mais na cama? Não estaria na escola quando ela chegou. Sinceridade cronista – dramaturgo – estou sendo piegas? Ou piegas é a indesejada de todos nós que agora se mascara para o encontro? Desde quando essa estética é sua preocupação?
Tenho medo do esquecimento. A senhora lembra-se da vida do seu pai, criança trazida de Angola, que se tornou homem forte – trabalhador – e muito pobre, por apelido Maninho. A senhora trabalhou tanto a vida inteira, não teve tempo de ter família. Quando a senhora se for, quem se lembrará? E as vítimas da violência nas escolas, quem se lembrará dos seus nomes, suas histórias de vida? Passada a comoção do momento, os vídeos do crime vulgarizados nas redes digitais, nos programas sedentos de audiência e tragédia, quem se lembrará?
Restará a lista macabra: São Paulo (SP), 2023, 1 morto, 4 feridos. Aracruz (ES), 2022, 3 mortos e 11 feridos. Sobral (CE), 2022, 3 feridos, um na cabeça. Barreiras (BA) 2022, 1 morto. Rio de Janeiro, 2022, 3 esfaqueados. Saudades (SC), 2021, 5 mortos e 2 feridos. Caraí (MG), 2019, 2 feridos. São Paulo (SP), 2019, 1 professor esfaqueado e depois o agressor esfaqueou-se. Suzano (SP), 2019, mortos: 5 alunos, 2 funcionárias, o tio de um dos atiradores. Medianeira (PR), 2018, 2 feridos. Goiânia (GO), 2017, 2 mortos e 4 feridos. Realengo (RJ), 2011, 12 mortos e mais de 10 crianças feridas. Números que não falam da dor, dos traumas dos familiares e amigos. Mas que não se pode esquecer.
Não se pode esquecer, olhar as datas, a concentração da violência em anos próximos. Contam alguma coisa? São obras de um trágico acaso, como a presença da professora Elizabeth que naquela segunda-feira não ficou um bocadinho mais na cama? A senhora que já viveu tanto, dona Helena, o que dizer à professora? “Descanse em paz”? Será que um professor assassinado consegue descansar em paz? Será que a pergunta “onde foi que falhamos? ”não lhe fica martelando a cabeça?
Descanse em paz, professora Elizabeth Tenreiro. Deixe a pergunta para nós que ficamos: onde foi que falhamos? Mas adianto que tenho medo de que passada a comoção a esqueçamos. Enquanto a indesejada de todos nós ensaia o próximo Ato, esquecemos a pergunta. Não Buarque, a saudade não é o pior tormento, o pior é o esquecimento.
*(https://culturaemcasa.com.br/video/quando-ela-chegar/)
Sergio Oliveira Moraes, físico, professor aposentado ESALQ/USP.