Mauricio Ribeiro
Esta semana é marcada por um cruzamento crucial e oportuno de dois calendários. Enquanto o mundo inteiro celebra o Dia Internacional da Mulher, em 8 de março pelo calendário gregoriano, o mundo judaico celebra Purim, em 14 de Adar pelo calendário judaico. Uma personagem histórica pertence aos dois universos em questão: Ester, a rainha da Pérsia que nasceu judia e cujo nome em hebraico era Hadassa.
Na semana em que se evocam nomes do peso e monta de Madame Curie, Joana D’Arc, Frida Kahlo, Leila Diniz, Chiquinha Gonzaga e tantas outras personalidades iconográficas de uma lista impossível de mensurar, citar uma personagem bíblica (e para alguns fictícia) pode parecer um tanto pretensioso. Mas quando se considera o apreço, estima e respeito de milhões de pessoas que professam as três fés abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo) por essa mulher, a história da cativa hebreia que foi alçada ao posto de primeira dama da Pérsia e cuja vida tem servido de inspiração para gerações de mulheres há mais de dois mil e quinhentos anos justifica sua posição no panteão de mulheres dignas de lembrança.
A história de Purim, registrada no livro que leva o nome de sua protagonista, é intrigante por diversos aspectos. Contextualizando de forma objetiva aos que não possuem familiaridade com a narrativa, um ministro da corte persa, Hamam, conspira para aniquilar os judeus naquilo que seria um holocausto da Antiguidade. Ester, casada com o rei Assuero, mas que até então não havia revelado sua ascendência judaica, atua no campo da fé e da diplomacia política para dissolver as ameaças contra o extermínio de seu povo, e o episódio torna-se uma das festas mais importantes do calendário judaico, Purim. Intriga que essa epopeia de fé seja contada em um livro canônico que não cita o nome de D’us em nenhuma de suas linhas, mas cuja mão se percebe (pelos que leem sob a ótica da crença) agindo nas entrelinhas da história. Tão intrigante quanto o link que existe entre este relato milenar e um episódio ligado ao fim da Segunda Guerra Mundial. Explica-se:
Conta o livro de Ester, cuja autoria é atribuída a Mordecai, judeu e tio da rainha, que na manobra de defesa do povo judeu onze filhos de Hamam morrem: a filha do ministro se suicida (conforme registros do Talmud, outro livro sagrado do judaísmo) e seus dez irmãos homens são assassinados. O rei pergunta a Ester se algo mais pode ser feito como desagravo à ameaça que pairou sobre os compatriotas da rainha, e ela pede que “amanhã os dez filhos de Hamã sejam pendurados na forca”. No registro hebraico, a palavra “amanhã” pode ser literalmente o dia seguinte, como pode ser dali a alguns dias, ou anos, ou eras. O mais incrível é que o “amanhã” de Ester aponta para o ano de 1946.
Em 1946 o Tribunal de Nuremberg processa e julga vinte e quatro oficiais militares que atuaram sob a bandeira do nazismo e buscaram executar o plano da Execução Final escrito por Hitler, o Hamam do século vinte. Dentre os acusados, onze dos homens do Führer são condenados à morte. Um deles se suicida na véspera da execução. Os dez que seguiram para a execução morreram não pela cadeira elétrica ou injeção letal, recursos disponíveis à época. Foram enforcados. O jornalista do New York Times que acompanhou o rito final registrou o detalhe mais intrigante de todos. As palavras finais do décimo executado foram “Festa de Purim de 1946”, antes do cadafalso ceder. Em ambas as histórias, a ameaça ao povo judeu, um suicídio e dez enforcados. Episódios interligados pelas palavras proféticas de uma mulher.
Há quem diga que elas têm um sexto sentido. Há quem afirme que a sua espiritualidade é um tanto mais evoluída do que os homens. Mesmo no judaísmo, onde os homens precisam de kipah, talit e tefilins como aparatos religiosos, elas são dispensadas de qualquer elemento material pois são consideradas seres diretamente conectados com o divino por sua própria constituição física. São as únicas capazes de gerar outros humanos, assumem papeis múltiplos nos capítulos mais decisivos da história humana, e ocupam hoje todos os escalões das esferas de poder. Carregam em si um tanto de Ester, a rainha. De Hadassa, a expatriada. Da mulher que enxerga no “amanhã” o que muitos de nós, homens, não conseguimos enxergar nem mesmo hoje.
Mauricio Ribeiro, jornalista, produtor cultural e coordenador da Associação Memorial Amigos de Sião