Meu querido finado

Camilo Irineu Quartarollo

 

Como se desapegar, mesmo entre lágrimas, e deixar o ente querido ir?

No velório, familiares e amigos que não se viam há anos. O reencontro constrangido dá lugar a assuntos familiares comuns como futebol, políticas, vendas, aplicações na bolsa, anedotas. Enchem as salinhas de café e arredores, não tão próximos do féretro. Talvez alguém em excessivo pranto tenha de ser retirado de cima do morto, mas esses surtos chorosos vistos à distância são contidos. Voltam-se ao vozerio e gargalhadas até que chega um padre, pastor ou coveiro e fecha a tampa do caixão. Nesse momento a atenção se volta completamente à sala fúnebre. Já vão enterrar?

Frustração, protesto, velórios não têm graça. Não ouviremos mais o ente querido, nem um gemido sequer daquele que parece até um ingrato diante da enorme expectativa de quem tanto suplicou a Deus por ele.

Um menino pode perguntar ao pai o que é um morto. Adultos evitam falar diretamente desse processo de perda fatal. Porém, quando se enterra o pai realmente temos a dimensão da morte. Sem chão, o abismo nos devolve o vazio desse olhar. Cadê o finado?

Ficamos remoendo, tentando relembrar, conversando com a memória daquele com quem não mais se convive. Assim fazendo esticamos a presença que tínhamos do falecido. As homenagens aos mortos prosseguem nas lembranças, em todas as famílias. Sim, vou a velórios e suporto o cheiro horrível daquelas flores de funerária. Que Deus se apiede de nossa insignificância, seremos carcomidos de dentro para fora!

Está lá nosso ente querido até que se toquem as trombetas da ressureição. Isso é coisa de fé, mas bom de se dizer, pois como queiram, todos nós viventes, e mesmo os não religiosos gostariam de acreditar que o seu finado pudesse se levantar como um Lázaro, voltarem vivos do sepulcro nem que fosse para nos dar um soco.

Nossos queridos finados passam a viver com a gente, nos nossos pensamentos. Por vezes, sem nos darmos conta se tornam recorrentes em nossas vidas, os pressentimos em todo lugar. De repente a brisa, o luar da madrugada e algo nos tocou naquela memória espantosa desse ente. Ah, se estivessem aqui para verem isso! Comungamos um mundo como se fosse partilhado não somente aos nossos olhos. E não são. Por certo foi alguém que nos distraiu com as exuberâncias da vida, mesmo sabendo que morreriam antes de nós.

Existe um conceito de Carl Gustav Jung chamado Sincronicidade. Uma paciente lhe contava que vira um besouro em seu sonho, quando, inusitadamente, entrou pela janela do divã o inseto do qual ela falava!

Esses lampejos da presença de nossos finados parecem essa tal Sincronicidade de Jung. Contudo, são reflexos de momentos psicológicos pelos quais passamos de dor, saudade, angústias. A ligação não termina com o sepultamento, notadamente no sentido psicológico. Vivenciamos a presença das pessoas que marcaram nossas vidas. Quem não sonhou com o seu querido finado?

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

 

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