Os argumentos do bolsonarismo

Adalmir Leonidio

 

Como cientista, sempre fiquei estarrecido com a capacidade de convencimento do bolsonarismo junto a um certo setor das universidades. Não sei a dimensão disso em todo Brasil, mas onde pude constatar de perto, deu pra ver o tamanho do problema. Como é possível argumentos sem nenhum fundamento racional convencer tanta gente inteligente? E como acontece a todo cientista, primeiro veio o espanto e depois a busca pela compreensão racional do problema.

Obviamente, já havia lido muita coisa e julgado bastante convincente, dos conceitos de fake news e pós-verdade ao avanço da extrema-direita pelo mundo. Mas ainda não me sentia satisfeito. Foi aí que busquei minha própria compreensão do problema.

Esta compreensão é parte lógica, parte histórica.

Afinal, do ponto de vista da lógica, faz algum sentido falar em “argumentos do bolsonarismo”? Não seria isso um elogio imerecido a um bando de lunáticos acéfalos? Neste caso, estaríamos insultando de forma grosseira e injusta muitas pessoas inteligentes, como aquelas que, no meio universitário, abraçaram a causa do bolsonarismo. E, na verdade, estaríamos adotando os argumentos que são próprios a esses grupos e profundamente irracionais.

Ora, qualquer manual de lógica ensina que existem vários modos de convencer alguém. O sofisma é um deles. Trata-se de um raciocínio que pretende demonstrar como verdadeiros argumentos que são logicamente falsos. Sua eficácia, via de regra, consiste em transferir o argumento do plano lógico para o psicológico ou linguístico.

Nos planos psicológico e linguístico existem vários tipos de sofismas. Destaco aqui apenas três, que considero os mais relevantes para o caso: Ad hominem, Ad baculum e Ad populum.

O primeiro consiste em atacar diretamente a pessoa a quem se pretende desacreditar ou ataca-la por meio da circunstância especial em que se encontra. Consiste num sofisma ou argumento falso na medida em que a verdade ou falsidade de uma posição ou afirmação não depende do caráter ou circunstância de uma pessoa. Este é o caso, por exemplo, dos constantes ataques de Bolsonaro à pessoa de Lula ou à circunstância de sua prisão, no intuito de associá-lo à corrupção ou torna-lo uma pessoa odiável.

O segundo consiste no uso da força ou da ameaça na tentativa de afirmar determinada posição. Vemos com frequência na imprensa notícias desta estratégia, sobretudo agora que se aproximam as eleições: tanto Bolsonaro quanto seus seguidores buscam intimidar os adversários por meio de práticas violentas ou de ameaças. Por exemplo: quase todo mundo hoje tem medo de usar uma camiseta ou um adesivo no carro com candidatos do PT. Até mesmo o uso de uma popular camiseta vermelha se tornou proibitivo.

O último visa exclusivamente a massa e apela, via de regra, tanto a outros sofismas, quanto a sentimentos de pertencimento como o patriotismo, a autoestima, o status etc. Bom, a este respeito não é preciso muito argumentar para concluirmos com alguma segurança que o bolsonarismo virou quase sinônimo, ao menos para esta massa, de brasileirismo, mesmo e apesar de estar na verdade afundando o país ainda mais no apartheid social.

Entre os três tipos de sofisma rapidamente descritos há em comum o apelo enfático a emoções e sentimentos que levam a uma conclusão, mas que não é, por sua natureza, lógica ou racional.

Mas por que, afinal, esta estratégia retórica tem feito tanto sucesso entre nós? Eis o que não é possível responder apenas no plano lógico.

O nosso famoso e sempre atual Sérgio Buarque de Holanda já nos deu uma resposta bem satisfatória ao abordar, em 1936, em seu clássico Raízes do Brasil, os aspectos fundamentais de nossa formação colonial. Nossa herança ibérica sempre apontou, desde o século XVI, para um modo de ser e estar no mundo, de agir e se relacionar com os demais, que denunciava certa irracionalidade.

Este habitus nacional que chegou ao Brasil independente e nos acompanha como uma sombra até os dias atuais pode ser condensado na figura do homem cordial. Não aquele homem bondoso, generoso, alegre e sorridente, como tantas vezes nosso autor se contrapôs, mas aquele que age com o coração, para o bem ou para o mal. Assim, será tanto bondoso com os seus, os de sua família, círculo de amizade ou pertencimento, quanto violento e cruel com os outros, mormente se esses outros estão hierarquicamente abaixo dele.

Mas o homem cordial não e só isso, mas também aquele que recorre frequentemente, quando em situações de conflito, ao famoso “deixa disso”. Como afirmou o próprio Sérgio Buarque em uma entrevista à revista Veja em 1976, nos momentos difíceis e às vezes decisivos para a nação, sempre vai aparecer alguém da família ou do círculo de amizades e dizer “gente, vamos deixar disso!”. E assim, pelo alto e entre amigos, ajeita-se tudo e tudo continua como estava. Foi assim em 1822, 1888, 1889, 1930, 1964, 2016 e sucedâneos.

E no fim todos ficam felizes, o Rei, o Bobo e a Corte! Menos os pobres e excluídos deste pacto que nada tem de nacional.

 

Adalmir Leonidio, professor da Esalq-USP

 

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