Alexandre Bragion
Estrela da vida inteira. Bandeira da vida inteira. Dois poemas de Bandeira pela manhã para anunciar o dia. Dois poemas pela tarde, para distrair a tristeza. Bandeira para a vida inteira. Para a vida que poderia ter sido e que não foi. Tosse-tosse-tosse. Sua benção, Bandeira! Sua benção e a de Santa Tereza. Tereza, não: Terezinha. Terezinha do menino Jesus. Tosse-tosse-tosse.
Leio Bandeira desde a infância. Minha melancolia talvez se irmane à dele. Por isso, nos livros de literatura da escola, eu criança corria os capítulos a ver se achava algum poema de Bandeira. Foi lendo seus poemas que entendi o que é poesia. À época, (ainda) não me foi preciso professor de presença-física – bastavam-me os becos linguísticos de Bandeira, sua angústia cheia de ladeiras, sua tristeza inscrita em desejos irrealizáveis, sua dor cômica (crônica e sardônica) e o urgente lirismo de quem sabe que na vida não há mais nada a fazer além de mandar tocar um tango argentino.
Trinta e três. Trinta e três. Triste e três. Minha primeira decepção amorosa foi culpa de Bandeira – é claro. Numa tarde nublada, a menina que achei que seria a minha primeira namorada ganhou de mim um poema de Bandeira escrito num cartão de bichinhos guardado num envelope azul. Era um poema lindo, de amor, intitulado “Letra para uma Valsa Romântica” – e dizia:
“A tarde agoniza/Ao santo acalanto/Da noturna brisa/E eu, que também morro,/Morro sem consolo,/Se não vens, Elisa!/Ai, nem te humaniza/O pranto que tanto/Nas faces desliza/Do amante que pede/Suplicantemente/Teu amor, Elisa!/Ri, desdenha, pisa!/Meu canto, no entanto,/Mais te diviniza,/Mulher diferente,/Tão indiferente,/Desumana Elisa.”
Tristeza. Meu namorinho não aconteceu. Acho que a menina que eu amava não gostou do Bandeira ou talvez tenha achado estranho o fato de eu ter lhe oferecido um poema que não tivesse nada a ver com seu nome (afinal, a menina que achei que seria minha primeira namorada não se chamava Elisa. Fazer o quê? Mas o poema lhe caía tão bem! E dizia tanto de minha agonia de menino. Além do mais, era um poema de Bandeira – oras!) Mas não foi de jeito. Ela não quis saber do menino triste que lhe oferecia a poesia duma da tarde sem acalanto. Desumana (e falsa) Elisa. Azar o dela. Tosse-tosse-tosse. (E então, doutor? Não é possível tentar o pneumotórax? Não. Bastam dois poemas de Bandeira ao cair da tarde para espantar a solidão. Tosse-tosse-tosse).
Em pleno (e antigo) ginasial, eu declamava para a classe os poemas de Bandeira. Certa vez, li o “Vou-me embora pra Pasárgada”. Meus amiguinhos adoraram. Especialmente os meninos. Tive de repeti-lo várias vezes, principalmente os versos “terei as mulheres que quero na cama que escolherei”. Foi um furor! Também gostavam quando o poema dizia que em Pasárgada “tem prostitutas bonitas pra gente namorar”. Éramos precoces, eu sei. Quando a professora nos pegou recitando esses versos, não deu outra: fomos obrigados, de castigo (e que belo castigo), a decorar o “Trem de Ferro” inteirinho. Café com pão, café com pão, café com pão. Os meninos quiseram me matar. Café com pão. Eu adorei. Café com pão. Era mais um poema de Bandeira para minha coleção. O-ôooo!
Hoje, a vida ainda segue entre Bandeiras, Glórias, baías e linhas do horizonte. Mas já não há mais a mesma graça do tempo em que Rosa parecia contar a mim as histórias que contava a Bandeira menino. Rosa. Totônio Rodrigues. Tomásia. Agora, por fim, acho mesmo que todos eles dormem, profundamente, também dentro de minhas lembranças distantes. Porém, e enquanto a indesejada das gentes não chega (e que sua consoada esteja ainda bem longe), releio Bandeira até arderem-me os olhos.
Bandeira da vida inteira. Estrela da vida inteira. Da vida que poderia ter sido e que não foi. Tosse-tosse-tosse. Dois poemas de Bandeira pela manhã, dois ao final da tarde. Para os sem-esperanças: Bandeira para a vida inteira.
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Alê Bragion, cronista crônico deste matutino desde 2017