Minha grande mágoa em relação a Alan Poe foi ele ter roubado de mim o começo sumamente fantástico de uma história que eu um dia eu quis escrever. “Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente fantástica e extraordinária que ora vou contar” – escreveu Poe no primeiro parágrafo de “The Black Cat”. Não é lindo? Lindo! (Salvo, claro, o fato de esse ser o trecho que Poe roubou de mim há mais de um século e meio – me passando sumamente a perna e escancarando a minha incapacidade literária, poxa. Afinal, eu jamais conseguiria escrever algo assim). Falando em lindezas vernáculas, “sumamente” é outro termo lindo também – não, é? Além de sonoro (“suu.. maa meeen tee…”), observe como ele se desdobra e se encaixa em vários sentidos – até no sentido que Poe o empregou em seu conto (apesar de que, nesse sentido, eu acho que o termo não deve estar no original em inglês, mas sim tenha sido sumamente escolhido pelo tradutor para o português. Será? Uma sumária preguiça sumamente me impede de conferir).
Em todo caso, concordemos que por outro lado há termos que são também assim sumamente estranhos. Outro desses, e que muito tem a ver com Poe e que sumamente (tudo bem, chega, prometo que essa é a última vez que uso a expressão) se liga às histórias dele é a palavra “fantástico.” Talvez impulsionado por um certo programa televisivo global, o vocábulo “fantástico” ganhou entre nós o sentido de extraordinário, incrível, genial, muito bom. Mas, nas artes, o termo fantástico tem a ver com o que é sobrenatural, de outro mundo, espectral, amedrontador. Por isso, as histórias de Poe são fantásticas – porque sumamente (escapou de novo) sobrenaturais e deliciosamente amedrontadoras. Destarte (outra palavra linda), Hector Berlióz, na música orquestral, bebendo na fonte sobrenatural da literatura – como na de Poe – compôs a diabólica “Sinfonia Fantástica”, na qual narra musicalmente as desventuras de uma personagem dominada pela alucinação do ópio a lhe povoar a alma de sonhos terríveis e de fantasmas sumamente (ops…) demoníacos.
Falando em demônios – tema de crônica publicada por aqui há algumas semanas – duplamente demoníacas, e por isso também fantásticas, são aquelas palavras que, em outros idiomas, formam o que se chama de falso cognato (que nada mais são do que palavras parecidas e que em línguas diferentes possuem sentidos diferentes). Por exemplo, “embarazada” – em espanhol – é o mesmo que “grávida”. Fantástico, né? Então, e especialmente se você for mulher, cuidado (em espanhol) ao afirmar que você ficou “embarazada” com alguma situação. Na mesma trilha, “Exquisito” – na língua de Cervantes – é o mesmo que “muito gostoso”. Por isso, se algum falante do “castelhano” (outra palavra que designa o idioma espanhol) elogiar sua comida dizendo que ela é “exquisita”, não se irrite. Sumamente, isso é um elogio fantástico!
Fantástico também é amar em francês, oui? Quem ama, em francês, diz: “Je t’aime” – não é demais? Como recusar o amor de quem fala assim? “Je t’ aime, moun amour. Je t’aime…” e o ser amado já foi dominado pelo demônio da língua. Acho até mesmo que amar em francês é mais fácil e mais sensual que em qualquer outro idioma. Em alemão, por outro lado, o amar é quase um espirro, um escape de ar entre dentes e pelo nariz – o que não deixa de ter a sua beleza, é claro, apesar de (para mim) não haver nenhuma sensualidade na expressão que (coloquem no Google transleitor para ouvir) na língua de Nietzsche (outro nome daqueles) dá vazão à declaração amorosa do “eu te amo” (“Ich liebe dich”).
Não sem uma boa dose de preconceito, Lobo Antunes – o escritor português – disse certa vez estando no Brasil, e isso já há quase uma década, que o alemão é a língua falada pelos cavalos. Por outro lado, um professor que tive na pós-graduação, tradutor de autores alemães que ele era, afirmava por sua vez que o idioma holandês é a língua falada por “Hagar, o horrível” (cômico personagem das tirinhas de HQ). Em defesa dos manos e manas germânicos, confesso que para mim nada é mais profundo do que “Deus” em alemão (que é “Gott”) – faca amolada que parece cortar a língua e queimar a alma quando falamos. E falando em falar, há pouco ouvi um jornalista brasileiro (de quem prefiro não falar o nome) falando que “tudo o que se diz em italiano é mais bonito”. Será?
Ouvir o “falar bem” – em qualquer língua – vem, no entanto, ficando cada vez mais complicado e difícil. Em terras brasileirinhas, o horário eleitoral no rádio e na TV, aliado aos debates políticos, desafia a nossa capacidade de amar a língua. Sobram vocábulos pobres, argumentos pobres, palavras pobres (porque mal escolhidas ou escolhidas para “lacrar” – palavra essa que, como é natural, sofreu também nos últimos tempos mudança em seu sentido). Quando o discurso descamba para o viés autoritário, golpista, virulento e – mesmo – de baixo calão (como o praticado por aquele de quem não se pode dizer o nome), tampo os ouvidos e busco na memória os ecos de discursos de grandes e democráticos líderes. Nessas ocasiões me lembro de Brizola e de sua lapidar expressão: “filhotes da ditadura”. Palavra acesa. Dura. Crua. E fantástica. Sumamente fantástica!
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Alê Bragion, cronista crônico desta Tribuna desde 2017