Ditaduras são nefastas

José Renato Nalini

A celebração dos 90 anos da Revolução Constitucionalista de 1932 precisa suscitar uma serena reflexão dos brasileiros que se angustiam diante de sintomas perigosos de quebra do regime democrático.

Para a meditação dos brasileiros lúcidos e capazes de enxergar tendências obscuras, é importante a releitura do decreto de cassação dos direitos políticos editado pelo Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil em 8 de dezembro de 1932, sob número 22.194.

Antes de ceifar as lideranças paulistas e a elas simpáticas, procura justificar a violência nele contida: “O movimento insurrecional que irrompeu no Estado de São Paulo na noite de 9 para 10 de julho do corrente ano (1932) foi articulado sob o falso pretexto do retorno ao regime constitucional e sob a injuriosa propaganda de ser proposto do governo provisório dilatar, por tempo indeterminado, os poderes de que o investiu a revolução nacional de 1930”.

A Revolução de 1930 elegera como um dos principais motivos de sua eclosão, a deturpação do regime representativo e pela fraude generalizada ao alistamento eleitoral e nas eleições. Tergiversa a ditadura ao sustentar que “impor sumariamente a volta imediata do país ao regime constitucional seria pretender restaurar, pela manutenção do antigo alistamento, o regime de ficção representativa contra o qual a nação se levantou em 3 de outubro de 1930, ou fazer obra perturbadora e sem sinceridade, porque o meio honesto de conduzir o país à normalidade constitucional é proceder-se ao alistamento e criar-se o corpo eleitoral que elegerá os membros da Assembleia Constituinte”.

Alfredo Ellis, em “A Nossa Guerra”, observa que a volta imediata ao regime constitucional não implicava em se recorrer ao eleitorado velho. A exposição de motivos abusa de conceitos que ressurgiram em nossos dias: a teoria da conspiração. Para isso, interpreta de maneira malévola as publicações paulistas durante os três meses de luta fratricida: “A farta documentação oferecida pelos próprios rebeldes, notadamente a dos jornais paulistas, publicada durante a rebelião, prova à evidência a conspiração anterior, o aliciamento de militares, a preparação bélica, a felonia da propaganda, a improcedência dos motivos divulgados para a insurreição e o objetivo não dissimulado da conquista do poder”.

O ditador se arvora em líder compassivo, pois fala “do alto espírito de tolerância e generosidade com que o governo provisório está tratando os que se levantaram contra ele com armas na mão”. Comenta Alfredo Ellis que a ditadura insiste no erro de supor que o povo de São Paulo é composto de imbecis que se deixam iludir por políticos, a ponto de marchar para a guerra sem um exame bem detido da questão.

O decreto se utiliza de linguagem melíflua: “É necessário pacificar o país, tão impiedosamente sacrificado pelos efeitos do criminoso movimento que trouxe a luta fratricida e a perda de tantas vidas preciosas da mocidade brasileira, mal irreparável e de repercussão pungente e prolongada no futuro do nosso país”.

Procura demonstrar que os paulistas não sabiam o que estavam fazendo: “Está provado que a grande maioria dos que se  bateram bravamente nas fileiras rebeldes se viu arrastada pela aleivosia e enganadora propaganda dos políticos ambiciosos, que foram os principais responsáveis pelo desencadeamento da guerra civil, e também é notório que, no correr da luta e desde o seu início, o governo provisório  manifestou, várias vezes, em declarações públicas, o ardente desejo de promover e facilitar a paz”.

Vê-se que as inverdades, as meias verdades, as hojetão disseminadas fakenews estão há muito insertas na política brasileira. Assumindo a condição de “salvador da Pátria”, de “verdadeiro mito restaurador da ordem”, o ditador decreta que “os autores do atentado contra os interesses supremos da Pátria são elementos incompatíveis com os ideais da revolução nacional de 1930 e, portanto, inaptos à colaboração na obra da Constituinte, que vai traçar novos rumos à vida do Brasil”.

Assim considerando, suspende por três anos os direitos políticos dos que se acharem incluídos em qualquer dos dispositivos enumerados nos parágrafos de “a” a “n” do artigo 1º, com isso excluindo da futura Constituinte o Estado de São Paulo. Alfredo Ellis usa de amarga ironia: “Ficam de parabéns os que querem ver São Paulo bem distanciado do Brasil!”.

De certa forma, tal distanciamento se consolidou. Basta verificar a falaciosa atribuição de representatividade parlamentar que torna o eleitor paulista um cidadão de segunda ordem. Para a representação do Estado-membro existe o Senado. A Câmara Federal representa o povo. E o povo paulista é subrepresentado no Parlamento popular. Aqui, o voto vale menos, se comparado com o que se garante a Estados de reduzida população, mas que têm direito a seus oito parlamentares.

E pensar que ainda existem os incautos que defendem, sem admitir que o fazem, mas com sua conivência, o nefando autoritarismo!

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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

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