Se a Covid deixar
Se a Covid deixar, talvez eu faça um bico nalguma próxima peça sobre Platão que não vai entrar em cartaz. O mito da caverna, à meia-noite, é a luz da sala de casa iluminando as rugas da minha testa. Sobram sombras camufladas projetadas na parede de uma ágora utópica que se abre entre o abajur e a porta da rua, acolhendo os poetas expulsos dA República. Então, escrevo. Mesmo porque, sem escrever, desisto – ex-isto. Pois existir, para mim, é isso, traço por traço, risco por risco.
Talvez, e se a Covid deixar, o mundo das ideias – que não faltam aqui dentro – se platonizará assim em sonhos e imagens mais criadas que sentidas. Fundirei acenos, concretizarei filosofias, criarei em forma de desenho a realidade que já projeto em boa parte de quase tudo que tenho. Agora, por exemplo, e talvez seja mesmo a alucinação, os lápis de cor sobre a mesa do escritório duelam com os livros que, na vez deles, duelaram com os sons dos instrumentos vencidos sobre o chão. (Enquanto ainda zune a dor nos ouvidos, é preciso produzir para não se esquecer do vivido). E escravo. Digo, e escrevo. Mesmo sob o efeito do mal dormido.
Melhor assim. Enquanto penso que crio, tento não correr brasileiramente sempre para frente (e não há aqui viralatice tupiniquim nesta afirmação). É que me incomoda tanto a rota louca e brasileira do seguir sempre adiante no sem olhar para trás que todo país conserva. Mário de Andrade já escancarou isso tão bem – e é Macunaíma quem nos joga na cara nossa condição de maratonistas do porvir (correndo ele mesmo, brasileiramente, sempre para frente, sempre para frente, só regressando ao ponto de partida quando tudo não tem mais jeito e o jeito é só o fim).
Amo Macunaíma, e por causa dele sei que nos falta caráter toda vez que seguimos adiante e buscamos, falsamente interessados, a nossa muiraquitã no mato sem fundo do fim do mundo. Afinal, “quando urubu está de caipora o debaixo caga no de cima”. Por isso, corremos. Morrem as coisas, as pessoas, os anos, vêm as enchentes, as inundações, as transformações, as pestes, os vírus e o verme (o grande verme engravatado a cuspir perdigotos em lives pela web) – mas os macunaímas-heróis-sem-nenhum-caráter seguem adiante para não correrem o risco de levarem na cara o barro que sobe dos debaixo. Acostumados a olhar e a correr em linha reta – exigências da máquina cidade e da máquina trabalho – eles ainda disfarçam tão bem quando em pleno voo sentem algo pegajoso a colar-lhes no rosto.
Por isso, prefiro a poesia à vida. Por isso, não escrevo em linha reta – porque como ensinou Otavio Paz, a prosa é a marcha que caminha para frente e a poesia a roda se que circula e eternamente volta, vai e volta, e termina para trás. Por isso, prefiro os mantras circulares, as mandalas dos discípulos de Nise da Silveira, as outras voltas dos parafusos de Henry James. Por isso, circulo mundos com as mãos e carrego dentro da poesia a prosa que eu não queria – mas que sempre também trago comigo.
Peço desculpas pela confusão. Mas é que às vezes a retórica covidiana é essa assim mesmo – um não se entender se entendendo, que as imagens e os acontecidos não são muito mais do que os idos que se vão sendo produzidos na imaginação. Ou talvez, vá saber, seja – como disse – só alucinação. Paciência – que eu não poderia perder essa experiência! Então, recolhamos a pressa e a lógica – que existir é outra coisa e não essa (e há ainda muito papel sobre a mesa). Se seguir é preciso, que seja. Macunaíma o seja! Sigamos. E croniquemos enquanto estamos!
Porque, de novo, amanhã é sábado e logo não é mais. Porque amanhã é sábado e é dia de se lembrar que a sexta, o hoje que se vai, já ínfimo ato que, minuto a minuto, vai ficando para trás, vai ficando nas mãos da gente, para que o lancemos de novo ao futuro adiante – como a pedra que Exú atirou hoje e que matou o pássaro ontem. Aguardemos. Que se a fortuna me deixar, talvez eu ainda retorne e faça um bico em alguma peça sobre Platão que possa ou não estrear, mas que me traga de volta ao mesmo sempre- lugar, a caverna sem mito e sem imagens projetadas sob o efeito da alucinação eternamente pronta a nos enganar.
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Alexandre Bragion, cronista deste matutino desde 2017 (e vá saber até quando!)