As origens da festa do Natal

Nestor Müller

 

Estamos chegando ao Natal. Então é preciso esclarecer algumas coisas.“Boas festas” é a expressão que todos nós usamos, por ocasião do Natal e do Ano Novo, transmitindo os melhores votos para as pessoas que encontramos.Masnisso que todos repetimosmisturam-se esquecimentos que precisam ser remediados. Pois afalta de conhecimento nos deixavulneráveis ao uso comercial que tomou conta dessasfestas e afastou o significado de suas origens.

QUATRO ASSUNTOS SOBREPOSTOS

O que acontece com o Natal em nossos dias constitui uma terceira camada de costumes, sobrepostos a uma festa ancestral, uma das primeiras entre todas as festas da humanidade.

Primeiro, a raiz do Natal,nosprimórdiosdaculturahumana,milênios antes do cristianismo, é a observação do solstício de inverno, com seus festivais do sol e da luz.

Segundo, aqui no Ocidente, essa raiz começou aser deixada de lado quando o cristianismo se associou a ela. A metamorfose cristã dos antigos rituais e festas populares foio primeirofator de esquecimentodaquela origem mais antiga, embora tenha guardado alguns dos seus sinais e significados.

Terceiro, depoisveio a figura do benevolente papai-noel que aos poucos, no correr dos séculos, deixou seu propósito exclusivo de consolar crianças pobres, e foi criando o hábito de presentes generalizados. Com isso a ênfase nos presentes começou a se tornar o mais importante da festa, passando a esconder o mistério do nascimento do deus-menino, o pobrezinho de Belém.

Quarto, o que acontece hoje é que nos encontramos aprisionados num consumismo denso e completamente exagerado que distorce,sem pudor, toda ariquíssima experiência humana que lhe é anterior, e sem a qual não existiria festa nenhuma.

 

UMA FESTA ANCESTRAL QUE EXISTE EM MUITAS CULTURAS

Pode causar surpresa saber que o Natal existia muito tempo antes de Cristo. E que ele tem a ver com o solstício de inverno. Mas por que esse solstício é tão importante? Por que é uma festa tão antiga? A resposta é que o fato astronômico do solstício de inverno – observado desde que existem seres humanos – organiza a nossa vida.

Os solstícios – de inverno e de verão – são acontecimentos reais que podemos registrar de modo muito simples. Basta prestar atenção para a duração dos dias e das noites, e também olhar onde o sol nasce ou se põe. Pois além do trajeto do leste para o oeste, a cada dia o sol nasce e se põe num ponto um pouco diferente na linha do horizonte, mais para o norte em uma metade do ano, mais para o sul na outra metade. Iremos perceber que há dois dias especiais: o dia mais longo do ano (com a noite mais curta) e, dali seis meses, o dia mais curto (com a noite mais longa). E justamente – no nosso caso que vivemos no hemisfério sul – o dia mais longo é o mesmo em que o nascer e o por do sol ocorremnum ponto mais para o sul. E também, o que chamamos de “ano” é o conjunto de 365 dias e um quarto em que o sol vai e volta de um equinócio até o outro.

Estou descrevendo aqui o que observamos a olho nu, numa perspectiva geocêntrica, como os seres humanos fizeram há dezenas de milhares de anos atrás. Foi só há quinhentos anos que os cientistas europeus começaram a raciocinar conforme o modelo heliocêntrico. Estou também afirmando que há dois fenômenos naturais no movimento do sol: o dia-noite, e o ano (a duração e localização do percurso aparente do sol). Horas, semanas, meses, séculos, calendários, são meras convenções. Diferentes culturas têm convenções variadas quanto a essas coisas, mas todas elas têm como base esses dois fenômenos, além do ciclo da lua e do movimento das estrelas.

No tempo em que a humanidade era nômade, a chegada do inverno sempre causava medo. O duro avanço do frio e das noites mais extensas representava uma ameaça à sobrevivência. Nas regiões bem ao norte, no hemisfério norte, a neve ia cobrindo a paisagem, cobrindo as plantas. Era assombroso, para as crianças, constatar como os dias ficavam muito mais curtos, dando a impressão de que a noite poderia durar para sempre. Porém os mais velhos tinham a segurança de que esse fato assustador – o sol chegando mais tarde a cada manhã e indo embora mais cedo a cada entardecer, trazendo um frio entorpecedor – esse fato iria passar, as coisas iriam mudar. Depoisos períodos amenos iriam voltar.

O dia dessa mudança era esperado com grande expectativa. Pois se acaso o sol não revertesse seu caminho, todas as esperanças estariam perdidas. O milagre, no entanto, não deixava de acontecer: o sol mudava lentamente o seu curso.  Então era festejada, mais uma vez, a vitória da luz sobre as trevas, confirmando a chegada de dias mais longos e quentes. O nome que nós usamos para esse dia – solstício de inverno – vem do latim, a língua dos romanos. Os deuses festejados nesse dia eram os deuses do sol e da luz.

Podemos marcar os pontos extremos do trajeto solar, e isso foi feito pelos antigos. Pois, repito, foi com a medida do tempo desse percurso do sol entre os solstícios, e com o tempo dos ciclos da lua, que se organizaram todos os calendários.

Duas ou três pedras fixas, alinhadas, permitem marcar exatamente a direção desses pontos extremos. E em todos os continentes essas pedras ainda existem até hoje. Lembremos, por exemplo, o impressionante círculo de Stonehenge, na planície de Salisbury, sul da Inglaterra. E aqui no Brasil temos as pedras que foram colocadas, há mais de 800 anos, no planalto hoje preservado no Parque Arqueológico do Solstício, uma reserva estadual no município de Calçoene, norte do Amapá. As pedras ali reunidas, algumas com dois metros de altura, só se tornaram mais conhecidas na década de 1950, e só começaram a ser pesquisadas a partir de 2008.

 

O NATAL CRISTÃO

Conhecemos bem os maravilhosos relatos do nascimento de Cristo, não preciso recordá-los. Contudo, não se sabe quando, exatamente, Jesus nasceu. Acontece que nos seus primórdios o cristianismo era apenas um entre dezenas de movimentos religiosos espalhados pelo Império Romano. Quando o cristianismo ficou mais forte foi necessário combater o culto popular do deus-Sol, ou Mitra. Conforme uma devoção proveniente da Pérsia (atuais Irã e Iraque), Mitra personificava o sol comoherói da luz,o deus que todo ano vence as trevas. Ele havia sido entronizado como figura principal do panteão romano pelo imperador Adriano, em 125 d.C.

A disseminação do culto de Mitra correspondia a várias outras tradições de deuses solares, como as de Krishna na Índia, Hórus no Egito, ou Hélio-Apolo na Grécia.  Ea festa do Sol sempre foi e sempre há de sercomemorada naquele dia que é o mais curto do ano, após o qual os dias recomeçam a se tornar mais longos.O próprio nome NATAL provém da frase latina “dies natalissolisinvicti” (dia do nascimento do sol invicto), dedicada ao deus Mitra.

Esse fenômeno natural- o dia mais curto do ano – corresponde, aqui no hemisfério sul, ao dia 24 de junho, festividade popular com fogueiras, balões, danças e bebidas, que o cristianismo batizou com o nome de São João. Nos Andes, na tradição inca bem mais antiga, é celebrada a festa de IntiRaymi (“festa do sol” em língua quéchua).

Ora, os cristãos, segundo sua fé, ensinam que “a verdadeira Luz que veio a este mundo” é Jesus Cristo. Então foi como que orgânico escolherem esse dia tão significativo como marco do mistério da Encarnação. Há uma verdade teológica que fica indicada com essa escolha. Mas a iniciativa de adotar essa festa pagã só teve início, aos poucos, em meados do século III. Foi somente no século seguinte, por volta do ano 350, que o Papa Júlio I oficializou o dia 25 de dezembro como data do nascimento de Jesus. Essa decisãose deu no contexto dos esforços da Igreja para superar as crenças pagãs antigas, correspondendo às opções políticasdo Imperador Constantino em favor docristianismo.

Enquanto isso, as Igrejas ortodoxas mantiveram – até hoje – sua comemoração no dia 5 de janeiro, o que era seguido em muitos lugares,inclusive na diocese do maior teólogo da Antiguidade, Santo Agostinho de Hipona.

Exemplo dos problemas que ficaram latentes é o fato de que mil e trezentos anos depois, entre 1644 e 1660, o governo da breve república inglesapuritana, proibiu os festejos de Natal. A justificativa foi que eles estavam repletos de costumes pagãos, e que enfim não havia nenhuma evidência de ser essa a data certa do nascimento de Cristo. Também a colônia puritana de Massachusetts, nos EUA, proibiu a comemoração do dia 25 de dezembro, entre os anos de 1659 e 1681.

 

O PAPAI-NOEL E SUA MANIPULAÇÃO COMERCIAL

A figura do papai-noel, hoje tão distorcida, tem uma história complexa, reunindo muitas tradições que foram se misturando.

Lendas sobre um bondoso ancião que presenteia as crianças existem em várias culturas. Por exemplo no Irã, o povo guarda a lenda de Amu Nowruz que chega na véspera do Ano Novo, lá festejado no Equinócio da Primavera. No norte da Europa também se guardavam costumes sobre espíritos que viajam à noite para presentear ou punir.

No cristianismo, a personalidade mais antiga é São Nicolau (270-343), bispo de Mira (atual cidade de Demre no sul da Turquia). Todos os relatos sobre sua vida foram escritos séculos depois, e incluem lendas de grandes milagres. Mas há consenso quanto a seu especial cuidado com crianças pobres. A mesma dedicação aos pobres caracterizava, por exemplo, São Basílio de Cesaréia (330-379) que também viveu na atual Turquia, ao nordeste da cidade de Mira.

São Nicolau foi chamado de Santa Klaus nos países do norte europeu. Depois se aliou a ele a figura do Papai-Natal, ou papai-noel como costumamos falar. A ele se juntaram várias tradições das culturas antigas, tais como o coche de renas (que obviamente não existem na Turquia).

Hoje qualquer criança sabe que o personagem mais importante do Natal é o papai-noel, e que ele está lá nas grandes lojas e shoppings. A mão oculta do Mercado gerou um poderoso promotor de vendas, nos lançou numa corrida frenética de consumo, e marginalizou o verdadeiro aniversariante, o pequeno Jesus. Por exemplo muitas pessoas não sabem que foi só em 1931 que o papai-noel passou a usar a cor vermelha da Coca-Cola, depois de uma bem-sucedida campanha de marketing. Antes, Santa Klaus e o Papai-Natal ainda usavam as vestes de um bispo católico ou as roupas comuns aos camponeses.

 

CONCLUSÃO

A origem primeira do Natal, portanto, é a ancestral e permanente festa do Solstício de Inverno.E essa certamente merece ser celebrada porque é uma data especial para toda a Natureza em nosso planeta e seu significado é realmente bonito. Dela ainda guardamos alguns símbolos como o pinheirinho e a guirlanda de ramos, as velas e luzes acesas,a ceia muito farta reunindo toda a família.

Sobre essa raiz fecunda foi colocada a festa do nascimento de Jesus, cuja beleza e cujos ricos significados não preciso repetir. Depois veio a tradição dos presentes dedicadosàs crianças pobres. E finalmente a atual e inadequada manipulação comercial.

A mais famosa das músicas de Natal foi composta na pequena cidade de Obendorf, perto de Salzburgo, em 1818, por um sacerdote católico e um músico amador. [ao lado, imagem da Igrejinha de São Nicolau, em Obendorf, onde foi pela primeira vez tocada a canção “Noite Feliz”] Aquela região ainda enfrentava duras sequelas das guerras napoleônicas. Suas primeiras palavras, na língua alemã, são: “Noite silenciosa, noite santa”. Para quem é cristão, desejo que o silêncio de seu coração possa ser uma verdadeira manjedoura, acolhendo a vinda singela e amorosa da criança de Belém. Religando-nos a nossas fontes, não deixemos no esquecimento as tradições mais antigas que sabiam observar e venerar a mãe Natureza.

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Nestor Müller, professor do IFSP, Campus Araraquara

 

 

 

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