Rodolfo Capler
A ideia de que os suicidas irão diretamente para o fogo do inferno remete aos primeiros séculos do Cristianismo, antes mesmo do imperador Constantino estabelecê-lo como a religião oficial do antigo Império Romano. Os primeiros líderes da Igreja, chamados de “Pais da igreja”, hegemonicamente reprovavam a “morte voluntária”, baseando-se nos pareceres dos dois maiores filósofos gregos, Platão e Aristóteles.
Em seu livro “Leis”, Platão declara que se deve recusar a sepultura pública “a quem tiver se matado, o qual, por meio da violência priva o Destino da sorte que lhe cabe…” Já Aristóteles em sua “Ética”, sustenta que o suicídio é totalmente condenável porque é uma injustiça cometida contra si mesmo e contra a Cidade, porquanto ao se opor à virtude é um gesto de covardia diante de nossas responsabilidades.
Os primeiros pensadores cristãos passam então a utilizar o posicionamento de Platão e Aristóteles e sustentam a interdição do suicídio. Em 348 no Concílio de Catargo, a “morte voluntária” é condenada como reação ao donatismo, que exaltava essa prática. Em 381, o bispo de Alexandria, Timóteo, decide que não haverá mais preces pelos suicidas. No século V, Agostinho de Hipona rechaça a prática do suicídio em sua obra “Cidade de Deus”; a sua exposição se torna doutrina oficial da Igreja.
Entre os séculos V a X devido ao endurecimento da moral cristã há uma forte oposição ao suicídio. Teólogos, moralistas e juristas repudiam o “assassinato de si mesmo”. Tal reação gera grande estigma sobre a figura do suicida, que tem seu corpo supliciado em público, sepulcro negado e bens espoliados. Entre os séculos XI a XIV, na chamada Idade Média Clássica, o esconjuramento do suicídio se petrifica mais ainda. Abelardo, no século XII em “Sic et Non” utiliza os argumentos platônicos para condenar todos os suicidas.
No século XIV, Tomás de Aquino na “Suma Teológica” retoma o problema, tratando-o de maneira mais filosófica. Sua solução fornecerá argumentos contrários ao suicídio durante séculos. Ainda no mesmo século, Dante Alighieri em sua “Divina Comédia” reserva um lugar para os suicidas em seu Inferno. Eles são alojados em na segunda parte do sétimo círculo, o dos violentos.
Vem a Reforma Protestante e a satanização do suicídio continua. Para Martinho Lutero o suicídio nada mais que o assassinato de uma pessoa cometido diretamente pelo diabo. Calvino é mais comedido que Lutero (como sempre) e limita-se a reiterar a proibição do suicídio. Anglicanos e puritanos também demonizam o suicídio. Em 1574 John Foxe passa a exorcizar pessoas com tendências suicidas. A atitude vira febre na época. Thomas Becon, capelão do arcebispo de Cranmer revela certeza quanto à condenação dos suicidas ao fogo do inferno.
Vem o século XX e com ele com a eclosão do pentecostalismo com sua excessiva ênfase na espiritualização do indivíduo e da vida. O suicídio então passa a ser visto como um ato conduzido por satanás que leva os indivíduos diretamente ao inferno.
Infelizmente, hoje a concepção de que o suicida está condenado à danação eterna ainda é suprema entre os cristãos. Isso gera estigmatização do indivíduo, que doente, num ato de desespero, tira a própria vida. Além disso, tal compreensão produz dor, culpa e desespero na vida dos familiares daqueles que cometeram suicídio.
Sendo assim, a desmitização do tema do suicídio se faz necessária. Amparados na Bíblia Sagrada não podemos fazer nenhuma afirmação de condenação dos suicidas ao inferno. A Bíblia registra apenas sete casos de suicídios; seis no Antigo Testamento e um no Novo Testamento (o de Judas). Em nenhum desses casos há alguma afirmação de que os suicidas – por causa do ato do suicídio – tenham sido condenados por Deus. Portanto, a última palavra sobre o destino dos suicidas pertence a Deus que sonda e conhece os corações. Conforme ensina o Novo Testamento, a salvação não pode ser perdida, de tal forma que do ponto de vista bíblico-teológico, homicídios, tampouco suicídios, podem anulá-la.
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Rodolfo Capler, pesquisador, teólogo e escritor; e-mail: [email protected] / Instagram: @rodolfocapler