Corações de pedra

Camilo Irineu Quartarollo

 

Se eu pudesse eu não seria um problema social – canta Seu Jorge.

Ora, ninguém vai morar sob pontilhões nem dormir em bancos duros e frios por vontade própria. Não adianta esconder o real problema ou terceirizar parques e praças a empresas que “embelezam” a cidade. Não adianta vender o sofá para evitar o adultério, isso só vai cortar um “barato”.

No século passado, em busca de trabalho nas metalúrgicas e construção civil houve migração intensa de nordestinos à terra da garoa, dos quais um foi presidente. Era o chamado êxodo rural. A indústria crescia e lhes empregava, enquanto ficavam na casa de algum conterrâneo. Muitos paulistas do interior também iam para a metrópole buscar vagas.

Nos últimos cinco anos, segundo o Estadão, a cada dia pelo menos 17 fábricas fecharam as portas. Há alguns anos que o desemprego bate recorde e a sangria não estancou. Sem dinheiro, sem comida ou casa, separam-se irmãos, casais, famílias. Pessoas de rua não é o problema, é o sintoma. O problema é a insuficiência de políticas públicas e de extrema mesquinhez em prover programas aos despossuídos, porquanto as burras de políticos estão cheias e esnobam gastos supérfluos. Deus nos livre dos corações de pedra!

Por outro lado, proliferam-se os condomínios fechados, fecham-se ruas antes públicas, templos são cercados com grades. Em algumas praças públicas ainda se aglomera gente num encontro que se torna costumeiro. Nas esquinas da vida os bares, lá antes de o bar abrir já estão à porta. Não desprezam uma boa pinga, algum papo, jogo de futebol ou mesmo aceno de um estranho taciturno escrevedor. A casa das pessoas é o aconchego do coração. Reunir-se em torno da fogueira ou não, conversar, dançar, festar é marca ancestral de humanos e o brasileiro não perdeu isso.

Porém, este convívio em público pode ser o que restou a quem ficou sem emprego, família e autoestima. Estes nem se podem dar ao pudor ou luxo dos potentados e saem à rua sobreviver de catar papelão, latinhas, sonhos e descansam o corpo sob algum viaduto por onde passam pessoas, carros e as boas intenções.

Se alguém estivesse morando na frente do meu portão ia ser inconveniente, confesso, mas há muitas formas de se tratar um problema social. O culpado não é o cidadão indefeso, nem meu portão o único do mundo.

No caso do viaduto da zona leste de São Paulo alguém teve a pachorra de encher de pedras embaixo, com indisfarçável objetivo. Sob golpes de marreta o pe. Júlio foi retirando pedras e criou um fato político-religioso pelas postagens sucessivas nas redes sociais e veículos de notícia – era fato, então vieram tratores ajudarem na retirada do entulho.

Por ironia, o viaduto chama-se Dom Luciano Mendes de Almeida, que foi um arcebispo destemido da Igreja recente, ao que o padre de rua parece seguir bem, quebrando pedras e aplainando caminhos.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor independente, autor do livro A ressurreição de Abayomi dentre outros ([email protected])

 

 

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