Divino – “O que adianta é a força do caráter”

Profa. Dra. Marly Therezinha Germano Perecin e a Bandeira do Divino. CRÉDITO: Acervo

A entrevistada do jornalista João Umberto Nassif é a professora Marly Perecin, que conta sobre a secular Festa do Divino Espírito Santo e outras histórias

 

 

 

Profa. Dra. Marly Therezinha Germano Perecin, a senhora nasceu em Piracicaba?

É meio complicado dizer que eu não sou piracicabana! Porque eu nasci em Taquaritinga! Eu nasci em Taquaritinga, região da Araraquarense. Isso porque os meus pais começaram a carreira fora de Piracicaba. A minha mãe é da família Silva Prado de Jundiaí e meu pai é da família Germano de Piracicaba. Ambas as famílias muito antigas, a família Silva Prado é família ligada ao tropeirismo da capitania de São Paulo, as descobertas de mineração do Anhanguera, em Goiás, as invernadas que iam até a Serra do Japi e as ligações entre o mar e o interior. Meu bisavô Silvestre Honorato da Silva Prado foi o último tropeiro da família. Do lado do meu pai, a família Germano tem origem em Piracicaba a partir de 1816, quando o meu tetravô Manoel Dias Ribeiro foi chamado pelo Senador Vergueiro, de Itu para Piracicaba, pra construir a primeira ponte sobre o Rio Piracicaba. A partir de 1816 ele e família passaram a residir na beira do Rio Piracicaba, justamente a partir do local onde foi construída a primeira ponte, na continuação da Rua Prudente de Moraes, chamada Rua da Ponte Velha. A sua filha Mariana se casou com um francês, Jean German, cidadão de Lyon, que veio para Itu para uma aventura ao Amazonas, mandada pelo Barão Langsdorff a serviço do Czar da Rússia. Ele perdeu a expedição e veio conhecer o fim do mundo, que era Piracicaba! O casamento se deu em 1827. O nome do noivo foi aportuguesado para João Germano de França, invés de Jean German. Daí a família German tornou-se piracicabana desde 1827, moradores da Rua do Porto, quando Piracicaba era praticamente recém-nascida, com grande amor ao Rio Piracicaba, as coisas do rio, a família Germano foi aos poucos se expandindo, minha tetravó, minha trisavó, minha bisavó, minha avó, meu pai, chegamos a minha geração e aos meus filhos. Todos muito bairristas e apegados a Piracicaba. Eu nasci em Taquaritinga, isso porque o meu pai conheceu a minha mãe lá. Casaram-se lá, mas a pressa era de voltar para Piracicaba! Aqui cheguei aos quatro anos de idade, estudei, me formei, quando fazia a faculdade fora, quer em Campinas, quer em São Paulo, estava sempre viajando, voltava para a minha casa, para o meu lar. Para as minhas coisas muito caipiracicabanas! Uma delas a Bandeira do Divino! Eu sou a última neta da Família Germano, como brinco sempre: “fim de raça” e herdei esse gosto das minhas ancestrais, o apego à Bandeira do Divino! As minhas primas, já falecidas, não tiveram esse apego embora frequentassem desde criança as festas. Mas a herança coube para mim! Eu pensei em uma maneira em honrar essa tradição, pesquisando alguma coisa, lendo, desenvolvendo algo na área desconhecida. É por isso que tive a oportunidade de fazer alguma pesquisa, na área do teatro e descobrir que a Festa do Divino tem 25 séculos de tempo! Isso mesmo, 2.500 anos!

Era uma festa pagã e que se tornou uma festa cristã!

Uma transformação milenar, uma transformação que nos chegou até hoje! O tema dessa busca é o apego ao sagrado! A vivência de uma festividade urbana-rural, de uma festividade sagrada-profana, que caracteriza aquilo que modernamente chamamos em Piracicaba de Festa do Divino.

Então entra aqui o aspecto histórico. Mas esse aspecto histórico envolve a teatralidade. Se busca na Civilização Helênica, no quinto século A.C. (Antes de Cristo), século de Péricles, nas tragédias produzidas por Sófocles, o maior de todos os trágicos! Ele deu o modelo da narrativa dramática e trágica. Suas peças constam geralmente de três atos: o prólogo, a sequência episódica e o êxodo. Esses três atos estão presentes na Festa do Divino, inclusive na Rua do Porto! Explico como. Em qualquer lugar do mundo, os atores são uma criação pagã, como o culto era uma criação pagã do Templo do Deus Dionísio. Dionísio na Grécia era um Deus com uma singularidade: era um Deus que morreu e ressuscitou. O seu templo era muito procurado, o seu culto era muito popular e após as cerimônias havia representações fora do Templo, a céu aberto, onde personagens caracterizados de figuras antigas, representavam, dançavam e cantavam! Aí a origem do teatro: as representações primitivas! Essas representações primitivas passaram a ser feitas em teatros muito antigos, muito simplesinhos e depois uniram-se a arquitetura que existe nas encostas da Acrópole até hoje: O Teatro de Dionísio, o Teatro Odeon e o Teatro de Arena, tornaram-se o modelo dos teatros atuais no mundo todo. Esses teatros constam das seguintes coisas eternas: a cene (skene) que é o palco, o proscênio que é o cenário; os replicantes ou os hipócritas que são os atores; os coreutas que são os dançarinos e cantores; o teatro, que são as arquibancadas com as pessoas que assistem. Todo teatro no mundo consta de todos esses elementos! Porque ali existe o teatro! Que na Grécia era a universidade do povo! Onde se contavam as histórias tristes do passado, os mitos, os sofrimentos dos heróis e uma coisa muito impressionante: descoberta dos Deuses. Por que o homem sofre? Por que a humanidade sofre? Por causa das limitações humanas! Os cristãos diriam: “Porque é pecador!” O homem é dono das suas escolhas, mas não é dono do seu destino! E o que é o destino? O destino é um emaranhado de forças subjetivas. Forças sobrenaturais! Um emaranhado semelhante a uma teia a qual estamos presos. E ninguém escapa! Aí diremos: “A Força do Destino”; quando o sofrimento bate: para o Herói, para o Deus, para o Rei, para Princesa, para um Herói Especial chamado Jesus Cristo, Ele aceita o sofrimento sem perguntar a causa. Pode ser inocente como foi Édipo, como foi Antígona, como foi Jocasta, como foi Jesus! Aceita o sofrimento, sofre inocentemente e revela o seu melhor caráter! Isso tudo transforma a paixão intensa no médico sírio chamado Lucas, conhecido por Lucas Evangelista! Tornou-se Lucas Evangelista! Mas era um médico da Síria! E se apaixonou pela doutrina do Paulo, e por amor a doutrina universalista de Paulo ele se fez escravo por amor. E acompanhou Paulo em suas andanças. Paulo era um homem medíocre, tinha limitações. Lucas se fazendo de escravo, escrevia as cartas para Paulo. Lucas se fazendo de escravo podia penetrar nas prisões de Cesárea e de Roma, onde Paulo esteve confinado sofrendo torturas, todo tipo de sofrimento. Quando ouviu as confissões de Paulo absorveu a doutrina universalista dele. Isso ele colocou um dia, passados todos esses trâmites, em um texto chamado Relato! Esse texto ele dedicou ao mais importante grego da época, Teófilo. Esse texto era uma coisa extraordinária, ele copiou exatamente a narrativa helênica, racional, copiou a tragédia grega “ipsis literis”, Sófocles contando sobre o herói chamado Jesus! Jesus é o herói de Lucas e ele conta o Prólogo, onde entram os atores, a Anunciação, o Batismo, a Seleção Episódica, todos os momentos de Jesus, os Seus Ensinos, até o Calvário. Mas não acaba aí. A tragédia só acaba no Êxodos. O Calvário, final da Semana Santa, é outra interpretação do teatro, não termina aí, ele escreveu posteriormente outro texto Ato dos Apóstolos, onde ele dá a sequência e onde ele insere o Êxodos. Como é essa parte? É o momento do Pentecostes judaico, onde os apóstolos recebem o Espírito Santo, é todo vazado na medição, na intervenção do Espírito Santo e espantam o mundo ao falar as diversas línguas, que seriam o instrumento da sua obra missionária. Espantam as pessoas e Pedro é obrigado a dizer: “Eles não estão ébrios, eles estão inspirados pelo Espírito Santo” e tem início a missão.

Essa transmutação da dor da Semana Santa, do Calvário. Na alegria festiva da descida do Espírito Santo deu origem a chamada “Festa Comemorativa da Chegada do Divino Espírito Santo”. Então é a festa da alegria cristã.

Isto aí, posto em texto, exerceu uma influência muito grande sobre todas as culturas da Bacia do Mediterrâneo, e sobre outros evangelistas pôsteres. Deu origem a grandes interpretações no Império Romano e no final do Império Romano e começo da Idade Média, que é o domínio da Igreja por excelência. Como o sincretismo religioso na Itália era muito forte, as tradições pagãs transformadas em práticas cristãs, passaram a comemorar com grande ênfase a festa da alegria cristã.

Isso durante toda a Idade média teve uma evolução singular na Itália. E no século XIII foi levada para Portugal pelos monges franciscanos. Recebeu a adesão da Rainha Isabel de Portugal que criou todo um trabalho em torno da celebração e festividades do Espírito Santo. Criou a Igreja de Alenquer, facilitou as ordens e de repente a festa se espalhou por toda Portugal, pelas Ilhas Atlânticas, chegou com os descobrimentos marítimos a África, as Américas e a Ásia. Chegou no Brasil!

Acontece que o Brasil teve uma evolução colonial especial. Pelo Nordeste mais próximo da Europa, mais açucareiro, e o Sul sempre mais abandonado. Uma capitania em particular passou séculos por isolamento. A Capitania de São Paulo! Nesta capitania, o Vale Médio do Tietê, sofreu maiores isolamentos do que o Vale do Paraíba. São duas áreas chamadas de Cultura Caipira. O Vale Médio do Tietê é a área caipira por excelência, porque ficou mais afastada e desenvolveu um dialeto próprio, com base no Inhangatu e nessa tradição indígena, nessas tradições jesuíticas, nessas tradições de sincretismo religioso, havia um conteúdo de sofrimento muito grande, não só pelo isolamento, como pelo afastamento das autoridades portuguesas, como na própria perseguição que os paulistas sofriam durante toda a sua história. Primeiro como sertanistas que descobriram as minas, todo ouro foi parar nos cofres do Rei! Todos sabemos que depois tomou o caminho da Inglaterra. Mas saía do chão através dos paulistas. Para São Paulo ficava realmente muito pouco. O Rei preocupou-se muito com o perigo dos paulistas um dia se tornarem poderosos e fortes. Tirou das mãos dos paulistas todas as varas de perfuração, todo o chão de maior valor, e um dia extinguiu a Capitania de São Paulo! São Paulo foi reduzido a um território do Rio de Janeiro. E o isolamento tornou-se maior ainda. O abandono maior ainda. Esse é o chamado século XVIII da fase colonial paulista, que é o século de grande sofrimento. O Vale Médio do Tietê estava sujeito a grandes chuvas, as grandes inundações, e após as inundações as doenças perigosas: tifo, maleita, febre amarela. As epidemias que grassavam com força, que roubavam a vida de centenas de pessoas. Às vezes famílias inteiras eram encontradas mortas, dizia-se que o interior de São Paulo era uma terra sem lei, sem rei e sem fé, e não havia a quem socorrer! Ninguém olhava pelo interior paulista! Até que um dia subiu a Serra do Mar e chegou a Bandeira Milagrosa do Divino Espírito Santo! A mesma que era cultivada em Portugal, a mesma que foi cultivada por todo o Brasil. Caracterizava-se por ter todos os símbolos da cristandade. Essa bandeira era trazida na frente pelos penitentes, pelos fiéis, nas procissões e pelos romeiros, que desciam o Rio Tietê fazendo o bem, trazendo nas barcas remédios, comida, consolo, enfim, esperança para as populações abandonadas a beira d’água. Muitas vezes acendia-se uma fogueira, fazia-se umas trabucadas, umas rezas e a bandeira passava por cima dos doentes, andava por todos os cômodos da casa, abençoava e seguia em frente! A Bandeira era consoladora, a Bandeira era milagrosa, e quem sobrevivia agradeceria um dia pelas graças alcançadas. Aí era a hora de pagar as promessas. Então no dia festivo todo mundo comparecia, para a celebração. Isto penetrou forte na personalidade dos paulistas! Todas as cidades da chamada Geografia Sagrada no Vale Médio do Tietê: Santana do Parnaíba, Itu, Porto Feliz, Conchas, Anhembi, Tietê e chegou a Piracicaba!

Em Piracicaba o fenômeno foi mais curioso ainda! Porque os Irmãos do rio acima desciam o rio para encontrar-se com os Irmãos que subiam de rio abaixo. Como não havia igreja na margem esquerda, onde a população havia sido transplantada, a única igreja que existia era na margem direita, ambas as Marinhas do Divino se encontravam na primeira curva do Rio Piracicaba, ou a última de quem sobe o rio. Em frente aonde havia a capelinha em ruinas. Subiam a barranca e vinha para a igreja, para o festejo. Demorou-se para que construíssem uma igreja na margem esquerda do Rio Piracicaba. Mas até 1816, 1818, se fazia esse trajeto. A descida dos Irmãos do rio acima e a subida dos Irmãos do rio abaixo, o encontro e a subida para a capelinha da margem direita. Esse encontro permanece até hoje. E as pessoas se esqueceram porque é justamente naquele lugar. Era o lugar da antiga capelinha, quando Piracicaba ainda era freguesia de Santo Antonio de Piracicaba. Nunca de Nossa Senhora dos Prazeres. Sempre Santo Antonio de Piracicaba. Isso tudo faz parte do histórico. O importante é reconhecer a alta dramaticidade da Festa do Divino. Se transportarmos para o presente, questionarmos o porquê do sofrimento, olhando para o massacre dos inocentes do Sudão, na cidade de Gaza, na Ucrânia, não adianta ficarmos perguntando o porquê, a razão. Existem homens maus, que são pecadores. Sim, sabemos! Adianta? Não adianta! A tragédia se consuma. A tragédia está presente nos seus três atos. O início: quem procurou essas guerras? Quem procurou o massacre dos inocentes? Como é que aconteceu isso? Quais foram os episódios que aconteceram em Gaza que a televisão mostrou fartamente? Ou na Ucrânia, que até hoje assistimos os drones matando crianças em escolinhas? Ou no massacre dos inocentes no Sudão, onde se cortam braços e pernas de crianças? Não adianta, o mal está me consumindo! O que adianta é a força do caráter! E a busca da paz pela Graça, e quando essa Graça chegar, agradecer a Graça e festejar a paz. A paz é muito difícil de acontecer! Mas ela acontecerá! E nesse dia haveremos de festejar no mundo inteiro as bênçãos alcançadas! Então é o terceiro momento, então se completam os três atos da tragédia. O começo, com os questionamentos, as mortes pavorosas com os bombardeios e os fuzilamentos, e a busca da paz, seja por tratado, seja por intercessão divina, seja por fracasso das forças humanas, pela Graça ela virá um dia! Então se festejará fartamente em todo o Universo. É isso que desejamos!

E todo o fim de uma desgraça, todo o fim de uma tragédia, precisa ser festivo, como ensinaram os cristãos! Portanto, a Festa do Divino é o fim de um sofrimento! Talvez começo de outro! Nós não sabemos o que acontecerá no futuro. Mas enquanto estamos vivos, vamos agradecer e vamos festejar. Dentro da dramaticidade de Sófocles, dentro do gênio de Lucas e dentro da sabedoria do Divino Espírito Santo.

Quando o eu falo em Festa do Divino, eu gosto de lembrar essas coisas. E guardo com muito carinho a Bandeira do Divino. A Bandeira do Divino tem as suas cores, o vermelho e o branco, o vermelho é a cor do cordeiro, a cor sagrada dos reis, a cor das chamas que foram vistas em cima da cabeça dos apóstolos, falando todas as línguas, o branco, a pureza da pomba, que lembra o batismo de Jesus, e os raios dourados, que lembram os sete dons do Espírito Santo. Nosso Senhor Jesus disse: “Eu vos deixo o Paráclito!” (O Paráclito é o Espírito Santo), “Eu Vos deixo o Consolador”, o Consolador que nos ensina através dos sete dons: Sabedoria, Entendimento, Ciência, Conselho, Fortaleza, Piedade e Temor de Deus”. A Bandeira até hoje arrasta multidões! Seja nos salões eruditos da Esalq, como nas últimas Festas do Divino, Catedráticos e gente da classe “A” se persignando ante a Bandeira do Divino, por força da tradição e gente humilde do povo, se ajoelhando também na barranca do rio, nas Águas Sagradas do Rio Piracicaba recebendo a Bandeira. Essa é a força de Piracicaba. Só Piracicaba oferece esse cenário maravilhoso da Rua do Porto! A navegação no ocaso, de tarde o Sol morrendo no Ocidente, o reflexo batendo sobre o Salto e as barcas singrando as Águas Sagradas do Piracicaba sob o comando da Marinha, do Divino Espírito Santo. Só Piracicaba!

Dra. Marly, sua abordagem espontânea, rica em informações e detalhes, é uma refinada palestra! Ao contrário do que alguns apregoam, a Festa do Divino não está acabando!

Ela está se transformando! Para melhor! Acompanhando o progresso! A tecnologia invade todos os setores! Nossos descendentes haverão de ter Festas do Divino totalmente transformadas!

A senhora tem uma Bandeira do Divino em sua casa?

Tenho!

Dra. Marly, a senhora casou-se?

Sim! Casei-me com Noedi Perecin, tivemos três filhos: O filho mais velho, Gil, Nélia, a filha do meio e Theo o filho caçula. Tenho 5 netos!

A senhora além do amor aos livros, preserva objetos que pertenceram a sua família, de grande valor afetivo!

São coisas das bisavós, das avós, como a bacia e o gomil (jarro), onde a minha mãe, quando ainda bebê, tomou banho, meus tios avós tomaram banho! É de louça inglesa, que os tropeiros traziam de Santos para São Paulo! Eram louças que se encontravam à venda em qualquer lugar. O Brasil não tinha indústrias. As louças inglesas eram as que se usavam na cozinha, louça da Companhia das Índias, era comum o uso na cozinha, não tinha outra procedência! Eu conservo algumas que escaparam, que se salvaram com o tempo!

Quantos livros a senhora já lançou?

Foram 10 livros! São 10 filhos! Fora os artigos. Fora os artigos científicos em revistas, textos avulsos, sem contar palestras, conferências e aulas. Já perdi o número de palestras, nem conto mais!

A senhora é uma palestrante requisitada! Acabou de fazer uma maravilhosa palestra com a qual muito nos honrou, é um privilégio ter uma palestra praticamente exclusiva, com a qual iremos brindar os leitores. A própria origem da Festa do Divino!

A origem da Festa do Divino no imaginário popular, pode ser que imaginem ter surgido recentemente, na Rua do Porto, em Piracicaba, no entanto ela surgiu há 25 séculos, é uma festa de origem pagã!

Um estilo musical que praticamente desapareceu em Piracicaba, com raras exceções, é o cururu.

O cururu é criação de africanos. É uma dança e ao mesmo tempo é um desafio. Se transformou ao longo do tempo. Tivemos grandes cantadores, grandes poetas, que se saíam bem nas rimas, as “carreiras” do “ão”, do “in” O Parafuso era um dos melhores, eu o conheci, era amigo do meu pai. Havia outros famosos como Pedro Chiquito, Nhô Serra, entre eles. Não só Piracicaba tinha bons cantadores, como também as cidades vizinhas. As danças paulistas mesmo são a catira ou cateretê, que não se dança mais em Piracicaba, eu acho uma pena. É uma dança masculina, onde os tropeiros, os cavaleiros dançavam com esporas, alguns tinham botas com esporas, outros dançavam descalços, mas com esporas e guizos. Então na medida em que pateavam, nos estrados de madeira, o barulho que ritmava com a dança, eram seguidos dos guizos, produziam um som muito interessante. Embalavam as danças noite afora! Era a catira ou cateretê.  Hoje existem outras danças, como samba de roda, samba de lenço. Não sei até que ponto são aculturações, de outras danças de origem portuguesa. Geralmente é lencinho pra cá, lencinho pra lá! Outras também estilo quadrilha, são introduções portuguesas. Mas o cururu é legitimo africano e catira legitimamente caboclo. Herança indígena, aculturada pelos primeiros mestiços da cultura paulista. Povoamento paulista. Danças de homens, mulheres não entravam nessas danças.

O cururu está praticamente sumido.

Pois é! A música sertaneja invadiu lá, e tornou-se o momento. Nem tudo é desprezível, porque tem umas músicas que são realmente bonitas. São transformações!

Tem muita música sertaneja que visa o aspecto comercial.

Pois é! O que a gente vê na Festa do Divino é um pouco de tudo! Só falta Funk! A Festa do Divino é uma festa de Tradição de Cultura Paulista! Interessante que é uma festa familiar, é engraçado, nas grandes aglomerações, movimentos de massa, a gente observa atitudes indesejáveis, uma certa violência, como no caso do futebol, do carnaval, mas na Festa do Divino há um respeito imenso, é uma festa familiar, de um público restrito, embora numeroso. Onde estão as famílias locais com as suas descendências. A Rua do Porto era a Piracicaba verdadeira, quando a cidade se mudou da margem direita para a margem esquerda, o núcleo residual era a Rua do Porto, a Rua do Porto com três a quatro quarteirões podia abrigar quantas famílias? No máximo 10! Por mais que essas famílias criassem e procriassem elas não davam conta da população que se transformou nos dias de hoje! As famílias subiram as ruas. O símbolo da ascensão social era subir a Rua Moraes Barros! Como para os imigrantes o símbolo a ascensão social era atravessar a ponte e vir morar na cidade! Os imigrantes italianos fizeram isso: os Alleoni, os D`Abronzo, os Ometto, os Dedini. Era o símbolo da ascensão social: atravessar a ponte e vir morar na cidade! Para os caboclos da Rua do Porto, subir a Rua Moraes Barros e morar no centro. As famílias de origem, descem, em redor da festa do Divino. É uma festa numerosa, de família, onde se reza muito, toma-se o seu chopinho, come-se à vontade, a orgia culinária com leitoas pururucas, cuscuzes, é outra festa à parte, o leilão é interessantíssimo, cheio de fogos e prendas; mesmo o comércio das barracas, tudo faz parte!

É o Dionizio!

Exatamente! São as representações, a porta do Deus Dionizio! A tragédia que Lucas transformou na tragédia cristã! O seu herói era Nosso Senhor Jesus Cristo! As festas em homenagem da felicidade de ter Jesus Ressurreto, e os apóstolos, prontos para falarem as línguas do Universo, e fazerem a sua missão apostólica, isso é a festa que deve ser comemorada! Com muita alegria!

A Igreja teve alguns elementos que não viam a Festa do Divino com bons olhos?

Saiu da própria Igreja! Na Itália foi a Igreja que sincretizou a festa pagã e cristã! Mas, no Brasil houve época em que a Igreja não aprovava essas coisas, em Piracicaba tivemos suspensão de 7 anos da Festa do Divino Espírito Santo! Mas, o Bispo de Mogi das Cruzes tem uma frase interessantíssima que salvou a festa, ele disse: “A Igreja não é dona do Espírito Santo! Cabe a Igreja aceitar as tradições, orientar a fé e participar das homenagens”! Então Mogi das Cruzes é onde se realiza a maior Festa do Divino de São Paulo. É uma festa que dura uma semana, com grandes procissões, com enormes representações e com a comilança característica da Festa do Divino. A comilança se chama “Bodo”.  Porque o Bodo era a distribuição e comilança de carne nas festas em comemoração ao Divino lá em Portugal. O bodo era distribuído no pátio das igrejas. No Brasil também. Em Mogi das Cruzes o bodo é tradicional.

Na procissão, após o bodo, entram os carros dos palmitos, as figuras vestidas a caráter, os desfiles de Cavaleiros, os desfiles dos Impérios, Império é a Capela montada lá, com a Bandeira, são muitos Impérios! Imperador é o Festeiro do Divino, o cortejo das figuras icônicas do Divino. Em Campinas e em Itu se realizavam grandes festas no tempo dos Barões. Em Itu ficou a lembrança do cortejo do Rei, da Rainha, dos pajens, dos Príncipes, Princesas, a Igreja fornecia os Homens da Opa, a banda, a procissão. Todos participavam do Império na casa do Engenheiro Jair Oliveira. Há pouco tempo o pároco da Igreja Nossa Senhora Candelária suspendeu esse cerimonial e a festa correu o risco de desaparecer. Mas o espírito da tradição, da preservação é tão forte que ela renasceu na forma de um desfile muito interessante. Nas ruas do centro ituano! Patrocinado pelos adeptos do Divino e pelo Museu da Música de Itu! “A Festa do Divino não morre, ela se transforma”.

Aproveitando o inesgotável conhecimento da senhora, na Rua Prudente de Moraes, ao lado do Banco Safra, há uma pequena construção católica, muita gente nem imagina o que é, muitos passam apressadamente e nem se dão conta, parece um local ignorado por aqueles que tem a obrigação legal ou espiritual do que se trata. Dra. Marly, com o tom de voz vibrante, explica:

O último Passo da Paixão! E o único do Brasil! Cada cidade tinha diversos Passos da Paixão. Na Procissão de Trevas na Semana Santa se faziam as palavras nos Passos da Paixão! Em Itu existe ainda esse costume da procissão e da Verônica. E em Piracicaba o último passo é esse, guardado pelo Banco Safra, que restaurou o pequeno Passo. Ele deve ter sido feito por volta de 1850. É a tradição ituana. Piracicaba reproduz os modelos ituanos. Piracicaba é filha de Itu, Piracicaba era o último bairro rural de Itu. Os nossos modelos são os legítimos modelos ituanos. Por isso que me perguntam o porquê de eu ser tão interessada na História de Itu?  A História de Itu é a História de Piracicaba, Itu é a cidade-mãe! Nós copiamos todos os modelos! Os bons modelos e os erros também! A politiquice, a politicagem, as coisas mesquinhas, da política. Isso foi muito próprio de Piracicaba, terra de coronéis, como Itu, terra de coronéis, terra de Barões, isso tudo ficou, em Itu isso é muito forte. É uma das causas de aborrecimento e prejuízos materiais e civilizatórios da própria cidade! Piracicaba sofreu e ainda sofre muito disso! São os modelos coloniais. O Brasil ainda sofre do ranço colonial!

Dra. Marly, o seu conhecimento, a sua didática, hipnotizam o ouvinte, com sua didática que magnetiza a nossa atenção. Suas lembranças tão nítidas, trazem o passado para o presente, como se tudo tivesse acontecido ontem! 

Eu me lembro bem, isso começou aos 4 anos de idade, quando cheguei em Piracicaba, e fiquei pasma com o Salto! Aquelas águas! E depois eu ia brincar ao rés da água, recolhia conchas às margens do Rio Piracicaba, era um rio puro, piscoso, maravilhoso, cheio de vida, eu brinquei muito com a molecada da Rua do Porto, inclusive um molecão bem mais velho do que eu, o Tote, funcionário da Mausa e quem mais salvou vidas no Rio Piracicaba. Ele era o ajudante dos bombeiros quando ocorriam os afogamentos. Era quem mais conhecia o Rio Piracicaba por dentro do que por fora! Quantas vidas ele salvou, quantos corpos ele tirou! Quantas coisas ele sabia do Rio Piracicaba! Ele era molecão boníssimo, a mãe dele era a Dona Antonia Malagueta. O meu pai era amigo de todo mundo na Rua do Porto, ele tinha um barco chamado “Jurema”! E de vez em quando eu descia com ele o Rio Piracicaba, era o Nirvana!  Se via o céu azul, a água deslizando, a mata verde, aquela placidez, aquela flutuação maravilhosa. O Rio conquistou a minha alma. Brincar na Rua do Porto, Tote me ensinava a jogar pedrinhas na água ricochetando! Depois nos encontramos já adultos, ele casado com Vitalina, sua casa era bem no Largos dos Pescadores, era o ponto de chegada de todo mundo: ministros, presidentes, prefeitos, mendigo, todos os segmentos da sociedade, ele tinha lá uma saleta, Tala tinha um fogão que servia torresmo, cuscuz, e a gente conversava! E ele era um grande poeta!

Qual era o nome de Tote?

Chamava-se Antonio de Pádua Tote (chegou a ter uma rua em seu nome). Ele ficou guardião das manifestações folclóricas da Rua do Porto. Foi ele que me deu a Bandeira do Divino. Uma bandeira que andou pelo Rio Piracicaba no começo do século XX. Um dia no pouso do Divino pegou fogo. Só escaparam a pombinha, a peanha (pequeno pedestal), e o arco de metal. Entregaram para ele os destroços da bandeira, fizeram outra, ele guardou em um cômodo externo a casa, por 20 anos.

Um dia o Tote disse-me: “Vem cá Marly! O seu marido tem a fama de saber consertar tudo, tá aqui a bandeira, um dia vou morrer e não sei para quem eu vou deixar! Leve para você!” Noedi restaurou a bandeira, reformamos a bandeira. Pedi para uma pintora pintar a bandeira, como deveria ser. Arrumei bonitinho no pedestal. Ela tornou-se a bandeira que me acompanhava para baixo e para cima. Depois arrumei uma outra bandeira, a bandeira verdadeira eu passei para a Maestrina Cintia Pinotti, que é a minha herdeira nas festividades do Divino. Ela foi nomeada Alferes do Divino, a única mulher que é Alferes! Alferes é um cargo de Cavalaria, um cargo militar. É aquele que carrega a Bandeira na batalha! Ele morre segurando a bandeira, não pode derrubar a bandeira, é ela que sinaliza o batalhão e a posição da cavalaria durante o combate. É ela que está fazendo as Festas do Divino na Esalq. Foi um outro salto: do popular passou para o erudito! A Festa do Divino é considerada um bem imaterial tombada pelo IPHAN, conforme a Constituição Brasileira de 1988. A Festa do Divino não vai morrer, vai se transformar. Um dia vai ser ópera e balé! Como são as grandes solenidades da Europa! As melodias de Mozart são sinfonias!

Tchaikovsky, dancinha russa que de repente se tornava um grande ballet! Bolshoi, O popular quando se repete e se transforma, se eterniza! O Lago dos Cisnes o que que é? É uma historinha meio chatinha, é uma história de disputa, o cisne branco e o cisne preto disputando o príncipe! Dois amores disputando o mesmo homem, é uma história do tempo da carochinha, que hoje é um grande ballet! Multidões vão assistir, batem palmas, acham uma maravilha! E é mesmo!

 

 

 

 

 

 

 

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