Ari Junior
Quando eu era criança, meu irmão Maurício, mais velho que eu, tinha o dom de me apresentar o mundo com trilha sonora. Foi com ele, por exemplo, que aprendi a escutar e gostar de Martinho da Vila. Ele me mostrava os sambas com uma reverência quase religiosa: ajeitava o disco, limpava o vinil com aquele pano gasto e colocava a agulha com cuidado, como quem abria uma memória. Eu, pequeno, ficava olhando o LP girar, enquanto o som chiava, e a voz de Martinho enchia a sala como se viesse de algum lugar sagrado do morro. Mas isso é tema para uma próxima crônica, prometo.
Esses dias, Maurício me mandou uma mensagem com uma música antiga: “Requenguela”. Fui ouvir. E, de imediato, senti aquele mesmo cheiro de infância, o som metálico do vinil riscado, o tempo em que os sambas contavam histórias que pareciam falar da vida real, sem meias palavras. Martinho sempre fez isso: cantava as contradições humanas com humor, e dava seu recado sem perder a ternura.
A canção começa leve, quase zombeteira: “Essa mina era joia, essa mina era bela, mas agora está requenguela.”
O refrão vem com repetição brincalhona, um trocadilho: “re, re, re, requenguela”, como se risse da própria tragédia. Mas, por trás do ritmo alegre, há uma crônica dura. Martinho fala da derrocada de uma mulher que já foi linda e desejada, e que agora é apenas sombra do que foi. A palavra “requenguela”, expressão popular, descreve alguém mirrado, enfraquecido, decadente. É uma palavra que por si só parece dançar, mas que carrega o peso da perda.
O samba faz da decadência uma metáfora da vaidade e do esquecimento. A moça da letra “esnobava todo mundo quando deixou a favela”, mas o tempo, esse velho capataz da vida, veio cobrar o preço. Martinho não a julga com raiva, ele a observa com ironia, como quem diz: a beleza passa, a fama engana, o espelho mente, e a vida devolve o troco com juros.
Enquanto ouvia, pensei em como essa personagem, uma mulher que um dia foi bela, amada e agora está “só costela”, poderia muito bem ser um símbolo do nosso tempo. Não somente a figura de uma mulher vaidosa dos anos 1970, mas também, talvez o retrato duma usuária de drogas atuais, a “cracuda” contemporânea: aquela mulher urbana, devastada, que um dia também sonhou em mudar de vida, ganhar o mundo, mas acabou engolida por ele.
A requenguela de Martinho é talvez a precursora da cracuda dos becos atuais; ambas vítimas do mesmo veneno: a ilusão de pertencimento a um lugar que nunca as aceitou. Uma, perdeu-se entre vaidade e rejeição. A outra, entre vício e abandono. Em comum, o corpo como campo de batalha, o rosto como espelho da queda, e a solidão como sentença.
Há também um detalhe que me chama atenção: Martinho fala da perda física — a mulher emagreceu, perdeu dentes, ficou rouca —, mas por trás disso está a perda simbólica: ela perdeu a voz. “Sua voz já ficou rouca, já não tem mais som na goela.”
A voz, que no samba é sinônimo de presença, de identidade, de resistência, aqui se cala. E é justamente esse silêncio que dói. Porque não é apenas a decadência física, é a anulação da mulher que já teve o que dizer, e agora não tem mais quem a escute.
De certa forma, “Requenguela” é uma crônica sobre o esquecimento. E Martinho, como bom contador de histórias, transforma o riso em compaixão. A gente ri do refrão, mas no fundo, sente pena. O samba serve como espelho do que o tempo faz com a carne e com a vaidade, mas também como lembrete de que ninguém está imune à derrocada, basta apenas um descuido da alma.
Requenguela é, no fim, sobre o que acontece quando esquecemos de onde viemos.
Martinho canta a queda de quem trocou o morro pelo asfalto, mas não conseguiu sustentar o salto. E é impossível não ver nisso uma crítica atual: vivemos em tempos em que todo mundo quer “subir”, ser visto, ser seguido, ser lembrado. Mas quanto mais se busca o brilho, mais fácil é se perder no reflexo. Talvez, se fosse escrita hoje, “Requenguela” começasse com um filtro de Instagram, e terminasse num vídeo viral de decadência. O samba seria o mesmo, somente com um cenário diferente. A vaidade ainda consome, o esquecimento ainda dói, e a humanidade continua tropeçando na mesma pedra: o desejo de parecer ser mais do que realmente se é.
No fim das contas, “Requenguela” não fala só dela: fala de todos nós.
Porque, entre uma ruga e outra, entre um orgulho e outro, o tempo também nos requenguela um pouco.
E só quem mantém o coração simples, talvez como aquele menino que ouvia Martinho da Vila com o irmão, é que ainda consegue dançar enquanto o disco da vida gira.
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ARI JUNIOR, ESCRITOR, CRONISTA E SUPERVISOR DE COMPRAS