Ilnah Toledo Augusto
A recente aposentadoria do Ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal (STF) transcende o protocolo burocrático; é um catalisador para um debate mais amplo e urgente sobre a própria essência da mais alta Corte judicial do país. Com a abertura de uma nova vaga, a discussão sobre a sucessão mergulha na complexa e persistente questão da representatividade de gênero no Judiciário brasileiro. Enquanto nomes masculinos, como Jorge Messias, são naturalmente cotados, a sociedade civil e diversas entidades intensificam a pressão pela indicação de uma mulher, clamando por um STF que seja, de fato, um espelho mais fiel e justo da nação que serve. Essa não é apenas uma questão de paridade e sim de profundidade e legitimidade da própria justiça. Afinal, como se pode esperar uma justiça plena se a voz de metade da população é historicamente silenciada em suas mais altas instâncias?
Para entender a importância desse momento, é crucial conhecer o ritual que envolve a escolha de um novo Ministro. O processo, um balé entre os poderes Executivo e Legislativo, começa com a indicação pessoal do Presidente da República. A Constituição Federal estabelece os pré-requisitos: o candidato deve ser brasileiro nato, ter entre 35 e 75 anos, notável saber jurídico e reputação ilibada. Uma vez indicado, o nome é submetido ao Senado Federal, o qual o candidato enfrenta uma sabatina na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Nessa etapa, senadores questionam o indicado sobre diversos temas, testando seus conhecimentos e posições. Se aprovado pela Comissão, o nome segue para votação no plenário do Senado, necessitando da aprovação da maioria absoluta dos senadores. Somente após essa chancela do Legislativo, o Presidente pode, enfim, nomear o novo Ministro. É um processo que, embora técnico, é profundamente político e revela as forças e prioridades que moldam o Judiciário. E é precisamente, nesse ponto, que a sociedade tem a oportunidade de influenciar, de fazer valer a demanda por uma corte mais diversa, que reflita a riqueza do povo brasileiro.
A história do STF, com seus 134 anos, revela uma narrativa de profunda desproporção, um verdadeiro espelho distorcido da sociedade brasileira. Dos 172 ministros que já ocuparam uma cadeira na Corte, apenas três foram mulheres: Ellen Gracie Northfleet (nomeada em 2000), Cármen Lúcia (nomeada em 2006) e Rosa Weber (nomeada em 2011). Com a saída de Barroso, a Ministra Cármen Lúcia permanece como a única voz feminina entre os onze magistrados. Essa estatística, por si só, é um alerta que clama por atenção: as mulheres representam uma parcela ínfima, cerca de 1,7%, da história do Supremo. Mais do que um dado, é um flagrante da persistente sub-representação que ecoa em todas as esferas de Poder republicano, questionando a universalidade das decisões proferidas por um corpo tão homogêneo. Que tipo de jurisprudência se constrói quando as experiências e sensibilidades de uma parcela tão vasta da população são sistematicamente negligenciadas?
Essa disparidade não é um mero detalhe numérico a ser ignorado; ela reflete uma lacuna histórica na construção de uma jurisprudência que, por vezes, falha em contemplar plenamente as diversas realidades, experiências e perspectivas de gênero da sociedade brasileira. A ausência de uma representação feminina equitativa no STF é um sintoma de desafios estruturais enfrentados pelas mulheres em posições de poder e decisão, ecoando a percepção de um Judiciário que ainda carrega traços de uma estrutura patriarcal. O que se perde, afinal, quando a balança da justiça pende tão desigualmente? Perde-se a riqueza de olhares, a profundidade de vivências, a capacidade de identificar nuances e, em última instância, a plenitude da própria justiça. Um tribunal que não reflete a diversidade de seu povo corre o risco de se tornar distante, alheio e, em última análise, menos eficaz em suas sentenças. É uma falha sistêmica que precisa ser corrigida com urgência e visão de futuro.
A indicação de uma mulher para a vaga de Barroso seria, portanto, muito mais do que um gesto simbólico para aplacar demandas sociais. Seria um passo concreto em direção a um Judiciário mais plural e, consequentemente, mais legítimo e eficaz. A presença feminina em tribunais superiores tem demonstrado impactar positivamente as decisões, trazendo novas abordagens e sensibilidades para temas cruciais que afetam diretamente a vida das mulheres e de toda a sociedade. É uma oportunidade de ouro para o Brasil reafirmar seu compromisso com a igualdade, não apenas na teoria, mas na prática mais elevada do direito, injetando perspectivas essenciais que há muito tempo estão sub-representadas. Não se trata de uma concessão, mas de um aprimoramento substancial da própria instituição, um investimento na qualidade da justiça para todos.
Estudos e análises apontam, de forma inequívoca, que a diversidade de gênero no judiciário enriquece o debate jurídico, fortalece a legitimidade das decisões e promove uma maior confiança da população na justiça. Um STF com maior representatividade feminina estaria mais apto a aplicar o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), garantindo que as decisões judiciais considerem as assimetrias históricas, sociais, econômicas e culturais que afetam as mulheres. Não se trata de uma pauta identitária menor, mas de um imperativo democrático que qualifica e aprimora a entrega da justiça a todos os cidadãos. É a chance de construir um futuro que a justiça seja verdadeiramente cega, não para a realidade, mas para os preconceitos que historicamente a moldaram, permitindo que a equidade floresça o qual antes havia desequilíbrio e a voz da razão seja amplificada pela diversidade.
A discussão sobre a nova nomeação para o STF transcende a escolha de um nome. Ela nos convida a uma reflexão profunda sobre o papel da corte na promoção da igualdade e da justiça social. A Tribuna de Piracicaba, ao abordar este tema, reforça a importância de um olhar atento para as questões de gênero em todas as esferas do poder. É imperativo que a escolha do próximo ministro ou ministra considere não apenas a qualificação técnica inquestionável, mas também a oportunidade histórica de corrigir uma distorção secular e avançar na construção de um STF que seja verdadeiramente representativo e espelho da nação que ele serve. Que esta aposentadoria seja o marco de uma nova era, a qual a excelência jurídica caminhe de mãos dadas com a equidade de gênero, para o bem de todos os brasileiros e para a solidificação de uma democracia mais robusta e inclusiva, e que a voz de cada cidadão, independentemente do gênero, ressoe na mais alta corte do país. A história nos observa, e a oportunidade de fazer a diferença está posta.
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Ilnah Toledo Augusto, professora, doutora em Direito pela ITE, Mestre em Direito e especialista; coordenadora e professora do NPO – Núcleo Preparatório para Ordem e do Curso de Direito