Ricardo Caruso
Em 2025, o Morgan Stanley divulgou um dado que surpreendeu até os mais experientes analistas: as famílias indianas acumulam cerca de 35.000 toneladas de ouro — o equivalente ao peso de mais de 6.000 elefantes vivos.
Esse volume monumental, avaliado em aproximadamente US$ 3,8 trilhões, representa uma das maiores concentrações de riqueza privada do planeta. E começa a alterar a própria percepção de riqueza global.
A valorização recorde do ouro, que ultrapassou US$ 4.000 por onça, elevou substancialmente o valor desse estoque. O resultado é um “efeito riqueza” inédito, em que milhões de famílias indianas se sentem mais seguras e financeiramente fortalecidas, mesmo sem vender uma única joia.
O fenômeno já influencia o consumo doméstico, o crédito e até as expectativas econômicas do país mais populoso do mundo.
Ouro e cultura: herança espiritual e financeira
Na Índia, o ouro é muito mais do que um investimento.
É uma extensão da identidade cultural, um símbolo de prosperidade e um amuleto contra a instabilidade.
O metal está presente em casamentos, festivais religiosos e rituais que atravessam milênios. Segundo o World Gold Council, mais de 75% do ouro adquirido no país é em forma de joias.
Cerca de 24.000 toneladas estão nas mãos das mulheres indianas, o que equivale a 11% de todo o ouro existente no mundo em mãos privadas.
Os estados do sul, como Tamil Nadu e Kerala, concentram grande parte desse patrimônio. Nessas regiões, o ouro é passado de geração em geração — como prova de amor, devoção e segurança.
O ato de guardar ouro tem valor moral: é poupança, seguro e herança ao mesmo tempo.
Do controle à liberdade de acumular
Durante décadas, o governo indiano tentou limitar o acúmulo de ouro.
A Gold (Control) Act, de 1968, impôs severas restrições à posse de barras e moedas, obrigando os cidadãos a converterem seus estoques em joias.
Essa política foi revogada apenas em 1990, com a liberalização econômica.
Desde então, o ouro voltou a circular livremente, tornando-se um dos pilares do patrimônio familiar indiano.
De 25.000 para 35.000 toneladas
O salto nas estimativas revela tanto o aumento das aquisições quanto a valorização dos estoques.
Em 2023, o World Gold Council calculava cerca de 25.000 toneladas nas mãos das famílias. Dois anos depois, o Morgan Stanley elevou o número para 35.000 toneladas — quase 40% a mais.
Parte desse crescimento se deve à alta de mais de 60% no preço do ouro em 2025, provocada por tensões geopolíticas, cortes de juros nos Estados Unidos e expansão das compras por bancos centrais.
Comparativo global: o ouro doméstico que supera países inteiros
A dimensão desse patrimônio impressiona ainda mais quando comparada às reservas oficiais de ouro de alguns países.
Veja a proporção:
— Famílias indianas (estimado): 35.000 t
— Estados Unidos: 8.133 t
— Alemanha: 3.352 t
— Itália: 2.452 t
— França: 2.437 t
— Rússia: 2.333 t
— China: 2.280 t
— Suíça: 1.040 t
— Japão: 846 t
— Índia (Banco Central): 880 t
O ouro guardado em cofres e templos indianos é quatro vezes maior que o total das reservas oficiais dos EUA e quase quarenta vezes superior ao estoque do próprio Banco Central da Índia.
Em termos de valor, equivale a mais de 80% do PIB indiano e supera a soma das reservas de todos os países do G7.
É, portanto, a maior reserva “não estatal” de ouro do planeta.
Efeito macroeconômico e o paradoxo da riqueza ociosa
Esse patrimônio silencioso tem implicações profundas.
O ouro nas casas indianas funciona como uma gigantesca poupança privada — mas improdutiva.
Enquanto trilhões repousam em cofres familiares, empresas e bancos lutam por crédito.
O paradoxo é evidente: a Índia é rica em ouro, mas parte dessa riqueza não circula.
Economistas como Nithin Kamath, fundador da Zerodha, estimam que mais de US$ 3 trilhões estejam “adormecidos” nas residências, fora do sistema financeiro.
Programas oficiais de penhor e depósitos de ouro tentam converter parte desse metal em capital ativo, mas enfrentam resistência cultural: para muitos indianos, o ouro é sagrado e intocável.
Ainda assim, o impacto indireto é real.
A valorização do metal gera confiança patrimonial, estimulando o consumo interno — especialmente entre as classes médias e rurais.
Esse “efeito psicológico de riqueza” é semelhante ao observado em bolhas imobiliárias, mas neste caso, lastreado em metal físico e tradição milenar.
A resposta do Banco Central da Índia
Desde 2024, o Banco da Reserva da Índia (RBI) vem ampliando suas reservas, comprando cerca de 75 toneladas adicionais e alcançando 880 toneladas — o equivalente a 14% das reservas cambiais do país.
Essa política de diversificação fortalece a rúpia e reduz a dependência de ativos em dólar.
Além disso, envia ao mercado uma mensagem clara: o ouro voltou a ser um ativo estratégico de Estado.
Reflexos no cenário global
A força do ouro indiano influencia diretamente o mercado internacional.
A demanda do país, somada à da China, responde por mais de um quarto do consumo mundial de ouro.
A elevação de preços em 2025 foi consequência desse apetite contínuo, aliado à instabilidade política nos EUA e à desaceleração europeia.
Se fosse considerado um país, o ouro das famílias indianas ocuparia o primeiro lugar mundial em reservas, à frente dos EUA, Alemanha e Rússia.
Essa concentração privada altera o equilíbrio global, criando uma reserva de riqueza fora do alcance de governos e bancos centrais.
Conclusão: um ativo entre a tradição e a geopolítica
O caso indiano mostra como cultura e economia podem se entrelaçar em escala monumental.
O ouro é, ao mesmo tempo, herança cultural, reserva financeira e instrumento de soberania individual.
Para o investidor moderno, a lição é clara: ativos físicos continuam sendo um pilar essencial de estabilidade em tempos de incerteza monetária e política.
Enquanto governos debatem sobre moedas digitais, trilhões de dólares em ouro físico descansam silenciosamente nas casas de famílias indianas — lembrando ao mundo que o valor real ainda brilha em metal puro.
FONTES — Bloomberg; Morgan Stanley; Economic Times; Times of India; Business Standard; World Gold Council; Investopedia; Visual Capitalist; Trading Economics; Wikipedia (The Gold Control Act, 1968).
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Ricardo Caruso, advogado, engenheiro, joalheiro, consultor em ativos físicos