Ilnah Toledo Augusto
Imagine uma nação onde a voz do povo é silenciada, onde a lei se curva à vontade de poucos e onde a liberdade é uma promessa vazia. Esse não é um cenário distante, mas um risco constante quando o delicado equilíbrio do Estado Democrático de Direito é ameaçado.
Em um mundo cada vez mais polarizado, o conceito de Estado Democrático de Direito não é apenas uma teoria jurídica; é a própria fundação de nossa liberdade e justiça. Ele representa a fusão vital entre a democracia — o poder emanado do povo — e o Estado de Direito — a garantia de que todos, sem exceção, estão submetidos à lei. Contudo, esse pacto social é frágil, constantemente testado por discursos e práticas que, sob o véu de uma suposta ordem ou eficiência, flertam perigosamente com o autoritarismo. É um convite urgente a um debate profundo sobre o futuro da governança.
O Estado de Direito atua como o mais potente antídoto contra a arbitrariedade. Ele assegura que as leis, fruto do processo legislativo democrático, prevaleçam sobre a vontade efêmera de qualquer governante. É a garantia de que direitos fundamentais — como a liberdade de expressão, a inviolabilidade da propriedade e o direito a um julgamento justo — não serão violados ao sabor de conveniências políticas. A independência do Judiciário, a autonomia do Ministério Público, a vitalidade da imprensa livre e a atuação vigorosa da oposição política são os alicerces que sustentam essa estrutura. Sem eles, a lei degenera em mero instrumento de poder, perdendo sua função primordial de limitador.
A democracia, por sua vez, transcende o simples ato de depositar um voto periodicamente. Ela se manifesta como um processo contínuo de participação cidadã, de debate público qualificado e de prestação de contas transparente. Um governo genuinamente democrático não percebe a crítica como uma ameaça, mas como um elemento construtivo e indispensável para o aprimoramento de suas políticas. A transparência nas ações, o diálogo aberto com setores divergentes da sociedade e o respeito incondicional aos resultados eleitorais, mesmo quando desfavoráveis, são os marcadores de uma maturidade democrática.
É precisamente neste ponto que se delineia a tênue fronteira entre um governo forte e um governo autoritário. O autoritarismo raramente irrompe com um golpe militar estrondoso. Mais frequentemente, ele se insinua de forma insidiosa e gradual, por meio de gestos e narrativas que corroem a confiança nas instituições democráticas. Os sinais de alerta são claros e historicamente documentados: Ataques sistemáticos às instituições de controle – como a deslegitimação do Judiciário, do Legislativo, do Ministério Público ou da imprensa, rotulando-os como “inimigos” ou “obstáculos”, é uma tática clássica para concentrar poder e silenciar vozes críticas; Culto à personalidade, – substituição do debate racional de ideias pela exaltação acrítica de uma única liderança, a qual a lealdade ao indivíduo supera a lealdade à nação e à Constituição; outra, a narrativa de “nós contra eles” – promoção de uma polarização extrema, que segmenta a sociedade entre “patriotas” e “traidores”, criando um inimigo interno fictício para justificar medidas excepcionais e restritivas; e, o desprezo pelas formalidades legais, pois a defesa do “jeitinho” ou da “vontade popular” como superiores aos trâmites legais estabelecidos, enfraquecendo deliberadamente os freios e contrapesos essenciais à governança democrática.
Quando um governo adota esses pressupostos, o Estado Democrático de Direito é colocado em risco iminente. A lei, que deveria ser um farol a guiar a todos, transforma-se em uma arma para perseguir adversários e blindar aliados. A vontade da maioria, um princípio democrático inegociável, é distorcida para significar a vontade incontestável do governante, ignorando e suprimindo os direitos das minorias.
Portanto, a pergunta que ecoa em tempos atuais não é se um governo é popular, mas se ele é, acima de tudo, guardião inabalável das regras democráticas. A vitalidade de uma democracia não se manifesta no silêncio forçado da oposição, mas na efervescência do debate plural, na capacidade de suas instituições de conter abusos e na vigilância incansável de uma cidadania informada e atuante. É um chamado à ação para cada um de nós — cidadãos, imprensa e instituições — para que defendamos, dia após dia, esse equilíbrio precioso. Porque, como a história incessantemente nos adverte, o preço da liberdade é a eterna e inegociável vigilância.
____________
Ilnah Toledo Augusto, professora do NPO – Núcleo Preparatório para Ordem, coordenadora do Curso de Direito, doutora em Direito, mestre em Direito e especialista