A música que morava no rádio

Ari Junior

 

Fui criado em Piracicaba, numa época em que o rádio era mais do que um aparelho: era quase um morador da casa. Tinha voz, humor e até personalidade própria. Acordávamos ao som dele, almoçávamos com suas notícias, dormíamos embalados por suas músicas. Lá em casa, o dia começava sempre com o programa “Rancho do Garcia”. Minha mãe, entre o café coado e o cheiro de pão quente que estalava ao sair do forno, girava o botão do volume e deixava o som preencher a cozinha. Eu, ainda meio sonolento, ouvia a menina berrar com empolgação contagiante: “Garcia, fala as horas!”. Mais tarde, descobri que a voz era da própria filha do locutor. E de alguma forma, aquilo me marcou.

Quando saía a pé para a escola, perto de casa, o rádio continuava me acompanhando pelas ruas do bairro. Bastava prestar atenção: de uma casa vinha o sertanejo raiz, da outra, o noticiário esportivo; mais adiante, um programa de fofocas, uma prece, um samba-canção. Era como se a cidade inteira tivesse o mesmo coração pulsando em várias frequências. As vozes se misturavam com o barulho dos talheres, das vassouras, do portão que batia. E eu, pequeno, achava bonito aquele coro involuntário da vida comum, de um Brasil que ainda cabia dentro de uma frequência AM.

Naquela época, o rádio era também uma companhia emocional. Havia o mistério do locutor que lia cartas de ouvintes apaixonados, ou até de crimes passionais, o riso fácil do convidado que interpretava piadas curtas, o narrador de futebol que parecia empurrar a bola com o fôlego. E havia música, muita música. Músicas que não vinham de listas de algoritmos, mas da intuição de quem sabia o que o público queria ouvir. E quando a intuição falhava, o público dizia o que queria, ligando, escrevendo, participando. O radialista era um tipo de maestro invisível que comandava, sem saber, o humor coletivo de uma cidade inteira.

Com o tempo, o rádio perdeu espaço para o disco, depois para o CD, depois para o streaming. Hoje, basta um clique para ouvir qualquer música, em qualquer hora e lugar. A tecnologia, inegavelmente, democratizou o acesso, e não sou saudosista de apenas criticar o novo. O que antes dependia de antenas e horários fixos, agora cabe num fone de ouvido. As vozes, que vinham de um aparelho de madeira no canto da sala, agora saem de assistentes virtuais que falam conosco pelo celular. Tudo ficou mais prático, mais limpo, mais rápido. Mas, confesso: há uma espécie de magia que o rádio tinha e que o streaming ainda não conseguiu reproduzir. Talvez seja o fato de ser ao vivo, de não poder voltar à faixa anterior, de fazer o ouvinte estar presente no instante. O rádio nos ensinava a esperar, e essa espera dava valor às pequenas coisas: ao próximo bloco, à canção que demorava a tocar, à voz conhecida do locutor que virava quase um membro da família. O Spotify te entende, mas o radialista te conhecia.

Ainda hoje, de vez em quando, gosto de ligar meu rádio de pilha que insisto em ter em casa. O chiado é o mesmo, e a sintonia continua caprichosa. Basta delicadamente buscar a sintonia para o som se perder ou se reencontrar. Ouço uma música qualquer e, por alguns minutos, volto à cozinha da minha infância, ao barulho do pão sendo fatiado e à voz da menina que gritava “Garcia, fala as horas!”. A vida, no rádio, soava mais próxima. E talvez fosse mesmo.

O mais curioso é que o rádio sobreviveu. Adaptou-se, foi para a internet, virou podcast, ainda é comercialmente viável e voltou a encantar quem gosta de histórias contadas com voz e emoção. A essência continua a mesma: alguém falando, alguém ouvindo. A diferença é que agora o “Rancho do Garcia” poderia estar num feed do Spotify, e sua filha talvez fosse uma influencer com milhões de seguidores. O tempo muda as formas, mas não muda o desejo de se conectar.

Em resumo, não há contradição entre o passado e o presente. O rádio não foi superado pela tecnologia; ele apenas trocou de roupa. A mesma emoção que havia em ouvir um gol narrado no radinho de pilha ainda pode ser sentida ao ouvir uma música antiga numa plataforma digital. O que muda é o contexto; o sentimento permanece. Porque, no fim das contas, a música continua morando dentro de nós, não importa se vem de uma antena, de um vinil, de um aplicativo ou de uma lembrança.

Talvez o que falte hoje seja menos “stream” e mais “sintonia”. Aquele gesto simples de ouvir algo sem pressa, sem pular, sem querer tudo ao mesmo tempo. Como minha mãe fazia ao girar o botão do rádio e deixar a vida entrar pela janela da cozinha, em ondas sonoras. E talvez, quem sabe, um dia, alguém ainda acorde com uma voz dizendo “fala as horas”, não como um comando digital, mas como um sussurro antigo, um convite poético para escutar o mundo com calma.

 

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Ari Junior, escritor, cronista e supervisor de compras

 

 

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