A coragem de ouvir promove a coragem de falar

Francisco Neto Pereira Pinto

 

Há muitos motivos para o suicídio.

A primeira vez que tive contato com a temática do suicídio, de maneira franca e despida de pudor, foi com a leitura do conto “O Búfalo”, de Clarice Lispector, escrito na década de 1960 e publicado na coletânea “Laços de Família”. Na história, acompanhamos uma mulher, vestida com casaco marrom, andando pelo zoológico à procura de um rosto que desperte seu ódio o suficiente para cumprir o que foi lá fazer: matar a si mesma. Busca coragem no leão, no macaco, no camelo, na girafa, no quati – e nada. Sofria de amor, ou melhor dizendo, de desprezo pelo homem amado. Enfim, encontra um bicho que desperta a violência necessária para, com a faca que carregava no bolso, tirar a própria vida. A mulher, de quem não sabemos o nome – porque poderia ser qualquer uma dos milhares que se suicidam todos os anos – não quis partir sozinha: ela exige a companhia da leitora, do leitor, até seu último momento.

Por que a mulher do conto se mata? Por desgosto de amor. Porém, como já demonstrava Émile Durkheim em seu famoso livro “O Suicídio” publicado ainda no fim do século XIX, são vários os motivos que levam uma pessoa a tirar a própria vida. É certo, também, que muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas se a pessoa tivesse tido a oportunidade de uma escuta acolhedora e a coragem de colocar suas dores em palavras.

Às vezes, a pessoa não quer morrer, mas sim alívio para o sofrimento

Um outro exemplo literário é o de Severino, retirante, do poema dramático “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto. Sentindo-se naufragado no mar da miséria, sem forças para sair do lamaçal em que via apodrecer sua vida, ele pergunta de maneira direta e franca ao Seu José, mestre carpina: que diferença fazia se, em vez de continuar, pulasse fora da ponte e da vida. Severino encontrou um ouvido atento e teve a coragem de colocar em palavras toda a angústia que estava sentindo, e encontrou o que, no caso dele, foi a melhor saída: a de permanecer na vida. Assim como Severino, muitas pessoas querem, na verdade, encontrar um pouco de alívio para o sofrimento – que, às vezes, pode ser comparado a um enorme oceano vazio, incapaz de ser vencido por qualquer ponte.

Ouvir exige coragem.

Para escutar uma pessoa em tamanha angústia e sofrimento é preciso ter coragem – e somente deve fazê-lo quem tiver equilíbrio mental e emocional suficiente. Seu José, mestre carpina, não fugiu da conversa, não deu sermão nem lição de moral. Não tentou mostrar que a vida é bonita e que vale a pena ser vivida. Ele manteve o diálogo, deu oportunidade para Severino expressar tudo o que sentia, e somente depois, com a celebração do nascimento de seu filho feita pelos vizinhos e pelas ciganas, foi que Severino pôde perceber que, no caso dele, a vida, mesmo que pequenina, severina, era digna de ser vivida.

Ouvir encoraja a pessoa em sofrimento a falar.

O psicanalista francês Jacques Lacan, que também era médico psiquiatra, nos ensinou que, para ouvir outra pessoa, não é necessário compreendê-la. Se alguém que está pensando em suicídio encontrar quem tenha coragem e abertura subjetiva suficientes para escutá-la – sem julgamentos, condenações ou mesmo sem compreender seus motivos – é possível que encontre força para falar de sua angústia e sofrimento. Quando ela fala, de modo honesto e livre, sente alívio, o que abre caminho para talvez perceber que não deseja, de fato, pular fora da ponte e da vida, e acabe reencontrando razões para sentir que sua existência vale a pena. De fato, abrir os ouvidos, a mente e, se possível, o coração para ouvir alguém em sofrimento pode salvar uma vida.

Que a vida valha a pena!

_______________

Francisco Neto Pereira Pinto, psicanalista, professor e escritor; doutor em Letras;  professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Literatura da Universidade Federal do Norte do Tocantins e autor de “Saudades do meu gato Dom”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima