Cecílio Elias Netto
Ora, que Freud, Jung expliquem. Não quero saber. O fato é que – indignado com as tais loucuras destes dias – eis que me vi transportado a antigas e saudosas ruas de nossa terra. Com amiguinhos corríamos pelas calçadas, disputando estrepolias. A mais arriscada e adorável era a de “roubar” pedacinhos de peças de bacalhaus expostos às portas das “vendas”. E sair correndo.
Se tivéssemos, tínhamos apenas um par de sapatos. Ou as “paragatas”, que se tornariam luxuosas – ou luxentas – alpargatas. De roupas, usávamos calções ou “macacões” – feitos com panos de sacas de trigo. E os atualmente valorizadíssimos “jeans” eram as depreciadas roupas de trabalhadores. As “calças rancheiras”. Dos pobres.
Curiosamente, sentíamo-nos felizes. Éramos. E sabíamos. Preconceitos, injustiças sociais, as chamadas diferenças de e entre classes – tudo isso havia. Mas – e, no entanto – viviam-se belezas que, a pouco e pouco, foram esquecidas. A cordialidade, por exemplo. O respeito, mesmo que motivado por hipocrisias. Usando chapéus, homens tiravam-nos diante de pessoas, cumprimentando-as. Se sentados, ofereciam seus lugares aos mais idosos, às mulheres. E, a estas, abriam portas, faziam-se gentilezas, atenções especiais. Eram reconhecimentos expressivos de sua condição de mães e esposas. Quanto, porém, à convivência no lar, lá estavam machismo, paternalismo…
Pertencíamos à geração do pós-guerra. Quase tudo havia de ser reconstruído. Não houvesse, ainda, forte consciência dos direitos à liberdade, havia o desejo, a aspiração, o sonho de tê-los. E as crianças corriam e brincavam soltas pelas ruas. Se – depois e ainda atualmente – estigmatizaram os “moleques de rua”, àquela época “as ruas eram dos moleques”. Em seus quarteirões, em seus bairros, uma criança não era, tão somente, filha dos pais. Era filha da comunidade. Talvez, até mais do que os próprios parentes, vizinhos eram, entre si, solidários e cuidadosos.
E corríamos, brincávamos pelas e nas ruas de pés descalços, de peitos nus. Não havia, ainda, televisores – e celulares! – que nos aprisionassem dentro das casas, ocultando-nos no cativeiro dos próprios quartos. Aprendíamos, sim, a importância do dinheiro, do sustentar-se por nós mesmos. Íamos, então, em busca de ganhá-lo. À nossa maneira, dentro de nossa realidade. Vasculhávamos, então, as ruas recolhendo garrafas de vidro, tampinhas de bebidas, caixas abandonadas de papelão. E íamos vendê-las. E tínhamos o nosso mais generoso comprador: o inesquecível Jorge Maluf, que tinha um armazém próximo à Prefeitura. “Seu” Jorge ficava com nossas coletas apenas por generosidade. Para ajudar as crianças. E sorria-nos ao fazê-lo. Deus, agradecido por nós, estará acariciando-o.
Ah! dirá alguém: “Eram outros tempos…” Não, não eram. O Tempo, em sendo infinito, não muda. Transformamo-nos nós, na loucura de tentar mudar, limitar o Tempo. Estamos nele, querendo comandá-lo, dimensionando-o, condicionando-o à nossa vontade. E – ainda nas distâncias da Antiguidade – narradores bíblicos já nos contavam: “Há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu: tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar
e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de matar e tempo de curar; tempo de derrubar e tempo de construir…”
Levado, pois, fui a tais recordações. Não se trata de saudosismo, o que seria, então, lamentável. Nem mesmo tão somente de saudade, essa nossa “vontade de outra vez”. Trata-se, apenas, de lembrar para poder contar histórias, função de quem, como as carochinhas, também se tornou carocho.
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Cecílio Elias Netto, escritor, jornalista, decano da imprensa piracicabana