PORQUE HOJE É SÁBADO – Vapor Barato

Quem, nesta vida, duvida dos dados mistérios riscados a seco, como sulcos, no corpo dos seres? Quem escapa do pensar nebuloso que empana a desdita das horas, o feito vivido, o esquecer dos idos acontecidos? Tempo. Ad tempora: memória. Que para lembrar é preciso primeiro esquecer. E, uma vez esquecido, lembrar é – em si – criação, invenção, solução de achados e resolvidos consertos mentais. Porque o tempo no tempo se ajeita. Na lembrança, o imposto se põe e se repõe em sonhos i(ni)maginados – raramente experimentados, quase sempre projetados e mais que efetivamente desejados. Pois quem garante ao mirante a vista incerta que nebulosa e insólita? Que o que se quer memória, em si, talvez seja só drama, teatro, fumaça distante.

Não fosse o vapor barato da recordação e eu ainda veria o agitar sinuoso das máquinas, o balé dos cilindros por sobre o corpo roliço das bobinas de papel gestando na madrugada um jornal fresco. Não fosse a fumaça da vertigem em evocação e a canção dos homens da noite, em orgiástica linotipia, ainda ecoaria aos ouvidos. Seu bater de ferros, seu amassar de folhas. Não estarão eles lá, ainda, presos à memória que guardo do antigo prédio da Tribuna Piracicabana – à Rua Rangel?  Não serei eu ainda o menino que às vezes ia com o pai acompanhá-lo na revisão de um texto no fechamento de uma edição? Ou estarei agora em frente à sede de O Diário, esperando esse mesmo pai fechar a porta do carro para irmos à redação? Não estou ainda com alguns jornais ao colo, exemplares novos, em espera para serem entregues aos leitores? Ora, então não são também os mesmos o Evaldo e o Cecílio que vejo e leio?

Vapor barato de um cronos-máquina, de um tempo-relógio imperfeito de tão perfeito – de tão bem feito, de tão (in)correto. Ainda esfrego os dedos nos jornais de agora para ver se soltam tinta como os que antes saiam quentes, fornada de pães impressos, na calada e escura quase manhã. Ainda espero, em plena gráfica do inconsciente, o entregador carregar a bicicleta enquanto mãos afoitas conferem sobre a bancada as dobras das últimas edições em pilhas sobrepostas. Ainda acompanho com os olhos o pontilhado das fotos, granuladas, estampando matérias contemporaneamente imateriais. Ainda escuto a conversa de um José com um Geraldo, ao telefone, comentando as notícias do dia, os artigos da semana na passagem dos olhos e das horas.  Onde estarão anotadas as críticas que faziam sobre a política da cidade, do país e do mundo? (O que diriam dos ventos de agora a quebrar as vidraças da história?).

Deslembrança. Nunca, assim, saudades. Deslembrança. Vapor barato da memória, fumaça volatizando-se no ar sobre um cinzeiro cheio de cigarros-recordações. Vapor barato em forma de texto, um “alê atorium” em forma de coluna que recomeça e recomeça sempre (às sextas, aos sábados e quando) a se presentificar no de se pegar com a mão nesta mesma Tribuna de outrora (em coluna móvel que também se moverá um dia para o talvez fatal do definitivo).

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Alê Bragion é cronista deste matutino desde 2017

 

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