João Salvador
Se eu tivesse acreditado na teoria de René Descartes, em relação aos animais, cuja lógica é de que nada mais são do que meras máquinas, privadas de conhecimento e sentimentos, jamais me envolveria na causa para defendê-los. Muitos ainda seguem essa esdrúxula teoria filosófica e perdem as chances de receberem a afabilidade, gratidão, fidelidade e doçura que deles provêm. Em todo o meu período laboral, além de cumprir dignamente com minhas funções, sempre me empenhei na defesa dos animais aportados na instituição, sem me preocupar com os dias e a hora. Hoje, em minha memória, retumbam certos fatos incomodantes, por não fazer melhor ou por deixar de fazer o que era óbvio.
Em 2006, pela iniciativa do então Prefeito do Campus, professor José Otávio Brito, foi instituído o grupo de controle dos animais abandonados – GCAA – na Esalq/Cena, que visava o confinamento dos cães e gatos perambulantes no Campus, para a vacinação, castração e posterior adoção. Programa bem discutido e elaborado, porém não tão bem conduzido inicialmente. Como membro e por ter apontado certas falhas na administração, fui acusado pelas narrativas de um casal de estudantes – fui aprisionado no gatil – e me impostas duas sindicâncias e dois boletins de ocorrência (BOs), derrubados pelas provas testemunhais e pela apresentação do meu certificado de membro do grupo, que me dava a prerrogativa de fiscalizar. Mas vamos render homenagens aos caninos e felinos:
“In memoriam” ao pobre cãozinho Guimarães, que me acompanhou alegremente, passo a passo, a um passeio que lhe custou o seu triste confinamento. Ficou separado de cães ferozes por uma divisória, transposta por um pitbull, que o estraçalhou. Bem que poderia ter mantido sob minha responsabilidade e doá-lo posteriormente. “In memoriam” ao Neguinho, um gato cinza muito bonito e amável, mas a pedido, entreguei-o a uma faxineira terceirizada. Triste dia em que o coloquei na minha sala, à espera da receptora. Ficou muito ansioso, parecendo adivinhar o que ia acontecer. A surpresa maior foi quando a adotante o pegou e o colocou na sua bolsa a tiracolo para embarcar no ônibus e ser conduzido por um longo itinerário. Imagino sua aflição durante esse trajeto. Nunca mais soube de seu paradeiro. Devia ter impedido de ser levado de tal forma. “In memoriam” ao gatinho de cor caramelo, que passou por mim minado por larvas de varejeiras, uma nuvem de moscas o acompanhando, e nada pude fazer. Amanheceu morto, carcomido.
“In memoriam” a outros doados, que me causaram dissabores, uma vez que insistiam em ficar comigo.
“In memoriam” ao cão de rua, de médio porte, que adotou um espaço da rua e importunava os transeuntes. Alguém chamou o Corpo de Bombeiros e o pobrezinho correu para o meu banheiro. Daí, o cambão fez a sua vez e, possivelmente, tenha sido abatido. Nesse tempo não havia um canil ou um gatil municipal, nenhuma lei de proteção e, tampouco, uma entidade de conscientização.
“In memoriam” ao Quito e à Nina, que com ajuda de dois docentes e alguns funcionários, conseguimos frear a sanha dos inimigos e mantê-los na entidade até o fim de seus dias. Sempre, em tempos de trovoadas, confinava-os na minha sala, bem escondidinhos. “In memoriam” também aos meus próprios anjinhos – Brigitte, Woody, Dara, Jimi e Bibi – pela convivência empática e simbiótica que tivemos. Faço minha, a estrofe de Chico Xavier: “A quem eu fiz mal, peço perdão. A quem ajudei, queria ter feito mais. A quem me ajudou, agradeço de coração”.
______
João Salvador é biólogo