Quando fui às cordas

Prezado Sergio. A viagem de volta da “terrinha” foi boa, deixou um gosto de dúvida sobre voltar definitivamente. Agradeço a acolhida – e você tem razão: o fubá moído mais grosso deixou o bolo mais leve, a polenta ganhou também. Grelhada, acompanha meu café enquanto escrevo.

Meu caro, a dúvida sobre voltar definitivamente não vem do resultado das suas temerosas incursões à “fronteira final”, a cozinha da sua casa, mas da noite de sexta-feira, a estreia do “Quarteto Piracicabano” na Biblioteca Municipal. Não sei se você se recorda de uma frase no romance “O Conto do Amor”, de Calligaris: “Eram tempos difíceis, o país era dominado por uma vulgaridade irresistível”. Esse sentimento de “vulgaridade irresistível” para mim resume anos recentes, persiste.

E aí, na estreia do Quarteto, na Biblioteca, o resistir. Na escolha das peças, nos comentários (que não se restringiram ao “técnico”), o resistir. Desde a apresentação, contando sobre a origem do Quarteto a partir de um outro, truncado pela pandemia, depois o falecimento de um dos integrantes – que também aquele fez sua estreia na Biblioteca. Gosto desses cuidados.

A escolha de duas das cinco peças, uma com arranjo outra composta por Ernst Mahle, as referências à EMPEM, ao casal Cidinha e Ernst, elos que ao lado da música unem os instrumentistas. O arranjo de outra composição, feito pelo falecido maestro piracicabano Egildo Rizzi, diretamente ligado à formação musical de um dos integrantes do Quarteto. Lembra? Nos contar também essa ligação foi outro cuidado que me tocou. Sergio, busque as matérias: “Nossa História – Orquestra Sinfônica de Piracicaba” e “Sede da Orquestra Sinfônica é denominada de Maestro Egildo Rizzi”.

O não restringir os comentários ao “técnico” foram cuidados, respeitos, gentilezas com a plateia, afetos que se opõem à vulgaridade, me tocaram profundamente. Sei, meu caro, que não são incomuns. Mas dado o momento, o serem narrados por pessoas que convivem, conviveram com o maestro, o casal. Pessoas que vivenciam, vivenciaram a casa do maestro, a EMPEM, o afeto do cuidado (simplifico) está posto. Com a situação da EMPEM, até quando as histórias serão vividas? Percebe como o cuidado, o respeito, a gentileza se magnificam diante da perda? Não nos permite ignorar, ignorar seria não resistir à vulgaridade.

A lembrança (perfeita) de Schopenhauer no programa trouxe-me outra: “a beleza salvará o mundo”, do livro “O Idiota”. Como “a beleza salvaria o mundo”? O próprio Dostoievski oferece a resposta em “Irmãos Karamazov”, busque-a meu caro. Arrisco uma: a beleza também salva o mundo na arte, nos cuidados, respeitos, gentilezas, como na noite de sexta-feira, quando resisti à minha própria vulgaridade – quando fui às cordas.

Sergio, a apresentação foi linda, nos repetimos nos elogios. Mas faltaram-me essas palavras. Caso você resolva divulgá-las, sua costumeira indiscrição, me poupe, tome posse. Fraterno abraço, Ivan.

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Sergio Oliveira Moraes é físico e professor aposentado Esalq/USP (devidamente autorizado a assumir a autoria)

 

 

 

 

 

 

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