Para onde vão os barcos quando somem no horizonte? Por que levam ao sem-fim o que há nos olhos das gentes e que é feito de praia, de cais e montes? Ulisses sem mar, eu sei: partir – às vezes – também é ficar. De cima da gávea, porém, o Diabo (sempre ele) de repente se põe a gritar: “ou lá, ou lá, dai cabo a marcha ré que temos gentil maré!” E seu ajudante encerra o pleito: “feito, feito”. A barca se água cheia e parte em meio à corrente que a serpenteia. As retinas de tantas docas inflam como velas de anseios a jorrar lágrimas feito fonte: para onde vão os barcos quando somem no horizonte?
Um velho puxa do mar o peixe que não consegue levar. Os dias duelam com os dias. As noites consomem as noites. O velho, o mar, o peixe Martin-Pescador são, de uma vez, um só ao fim da luta e na dor. Vaga. Uma jangada não retornará ao porto – nem Guma, o marinheiro, nem Lívia, seu amor líquido, se distinguem no para sempre do Mar Morto. Vaga. O tempo se fecha a distância e avança noturno ao ponto onde começa a imensidão dos mundos como ponte. Para onde vão os barcos quando somem no horizonte?
Há desejos de vitórias? Há conquistas de loucura? O que move os que o vento move sobre o sal das ondas navegando? Uns buscam a cura. Outros, verdade. Aqueles não querem menos do que amor e felicidade. Há quem anseie de novo pela terra, pela mãe apartada da vida. Há os que esperam trabalho, emprego, dinheiro, sexo, saída. E a nau vai se fundindo à linha ao longe – no timão segue Creonte. Para onde vão os barcos quando somem no horizonte?
Num átimo, a vista não vê mais o que há pouco era visão. Desaparecem sem tino os rumos da navegação. Transbordam apenas vazios e percepção, dividindo o espaço e a amplidão. O coração, gentil-gentio, não sabe se viu o que viu, hesita, se perde, sofre. Navio de oceanos terrenos a incerteza do viver semeia – há ainda os que as embarcações esperam, sedentos, seu regressar para areia.
Vaga a onda por onde a onda anda – ondeando – por fim sobre o mar sem fim. Navegar é preciso, sabe a alma descontente. E navega o viajante, mesmo sem navegar no distante. Sabemos. Não há como não partir – nem há como não ficar. O existir se faz viagem de cabotagem e ao mesmo tempo mística iniciação, destino em que se aguarda a imensidão defronte.
Há outra canção possível? Nos afrontamos? No mar tudo é crível. Desafiemos. Mas antes que a noite desponte, quando os marujos se vão, perguntemos mesmo que ninguém saiba ou nos conte: afinal, para onde vão os barcos quando somem no horizonte?
Alê Bragion é cronista deste matutino desde 2017