Preciso falar com o Chico

Alê Bragion

 

A vida é uma experiência estranha. Digo isso por experiência própria – com o perdão do trocadilho frágil. A gente pensa, planeja, programa – e vai lá a vida e muda tudo. Pior. A gente vive, sofre, decora, acha que aprendeu, acha que entendeu – até que a vida, de repente, é outra, de repente é oca e a gente descobre que se perdeu. Por isso, preciso falar – urgentemente – com o Chico.

Não sei se as pessoas entendem que são sobreviventes. Eu, de minha pleonástica parte, não me esqueço. Vacinado, devo a duas Covids recentes a mente (ainda mais) atrapalhada, a falta de alguma memória, o alheamento momentâneo que imediato de vocabulário, de cronologias, de histórias. Sem vacina – com certeza – eu já seria a completa incerteza que nos espera um dia e nos fará ainda mais (por todos) esquecidos. Mas sobrevivi – oras. Sobrevivemos até aqui. (E que experiência estranha, repito). Por isso, e porque não se mexe impunemente com a vida alheia, preciso (para ontem) que o Chico me leia.

Guardei por anos, de cabeça, coisas que agora me parecem inúteis – e que a Covid e a vida (mudada) me levaram quase inteiramente: enredos de romances, marcos iniciais de períodos históricos e de escolas literárias, a data de publicação de uma infinidade de livros, poemas inteiros, letras de músicas. Mais. Me esqueci como é estar num sem-fim de situações e lugares, numa série de encontros, de trocas. Me esqueci de alguns sentimentos, até – de prazeres. Me esqueci como me portar, me importar ou fingir. Acho mesmo que me esqueci de me achar, de fugir. Aí, para complicar, o Chico pega e começa também a mudar tudo de lugar.

Primeiro foi “Com Açúcar com Afeto”. Agora, “Beatriz”. Depois de quatro décadas dessa canção, o Chico (e o chamo assim dada à intimidade que não temos) resolveu mudar o verso “será que é divina a vida da atriz?” para “será que é divina a sina da atriz?” Poxa, Chico. Espera um pouquinho – e antes que eu me esqueça também dessa história, conversemos.

“Vida” é imenso, Chico (você sabe), é dor solitária dentro do coletivo (como já escreveu Camões sobre o amor: é o “solitário andar por entre as gentes”). “Sina,” para mim, é o contrário: é sectarismo grupal, é o coletivo no individual (e me lembra romanos, gregos e portugueses). Vida (poxa) é sofrimento (acho que não estou bem esta semana). Sina é batalha. Vida é estranheza. Sina é guerra, é heroico. Vida é peso etéreo. Sina é chão, é terra. Me ouve, Chico. Eita, vê se não erra.

(Além disso, a expressão “divina a vida” traz no som a aliteração do fonema que a letra “v” carrega – e que produz um eco genial e agudo (que flutua e se encontra com a repetição do “d” em “a vida da”). Lindo! Sina é nasal, fechada e surda – quase sem efeito e termina com a língua escapando torta do céu da boca e parando no meio dela. Depois, ainda, a troca forma um cacófato em “a sina da” (que produz o som engraçado de “assinada”). Para, Chico. Assim não dá).

Acho ainda que vida é sobrevivência. Sina é vitória (ou derrota). Vida permite que a gente reflita sobre a gente – usando como mote a palavra. Sina é registro histórico de batalha alienada. Vida é coração. Sina, armadura. Vida é peito aberto – é feita para se doer e se cultivar. Sina é faca na cintura, é reação à desgraça que virá. Vida é Chico (sou eu, somos nós, é o dom). Sina é Dvajan pelejando para caetanear o que há de bom.

Não sei. Me perdoe, Chico. (Acho que não estou mesmo numa boa semana). Talvez minha ranhetice em criticar o feito seja só pretexto para cronicar (a vida), no hoje, com um toque deprimido de despeito. (Para piorar meu mau humor sem sentido, fico pensando que até que pode haver uma “vida divina”, como dizia a canção. Mas, sina? Não. Não há “sina divina” ou feliz – nem para mim, nem para você nem para a dita cuja da Beatriz).

Mas, deixa. Pensando bem, Chico, até que ficou bom. (E quem sou eu, no fundo, para dizer o contrário – o gênio aqui é você, a música é sua e é você quem dá o tom). O resto, aí sim, é a vida de quem ouve, de quem lê. Para falar a verdade, talvez você esteja certo. Afinal, quem não espera que a sina supere a vida? Viver é, pode crer, cada vez mais o já era. Sobreviver – mais do que viver – isso, sim, talvez, seja o que o novo normal, a batalha real de nossa vida. E que sina a nossa.

 

Alê Bragion é cronista desta Tribuna desde 2017

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