Mauricio Ribeiro
Sempre tive dificuldades com o entendimento de que há uma Páscoa judaica e uma cristã. Para mim, as duas celebrações sempre estiveram intrinsicamente ligadas. Como filho de pastor batista e um amante da tradição judaica, cresci na consciência de que a festa do cristianismo é uma releitura do rito hebraico inaugurado no Egito. O cordeiro sacrificado no Êxodo, cujo sangue afastou o anjo da morte das casas judaicas, se personifica na pessoa de Jesus, aclamado como “Cordeiro de D’us que tira o pecado do mundo”. Pelo menos pra mim, ponto pacífico. Mas não posso negar que a festividade ganha contornos e variações, principalmente naquilo que é o seu elemento de diferenciação e ao mesmo tempo de afinidade: a mesa.
Tenho a mesa de uma casa como um altar. Uma obsessão pra mim que ela esteja limpa, arrumada, livre de elementos estranhos ao sacro momento da partilha. Mesmo a comida diária, cotidiana, precisa ser dividida em um ambiente de mínima organização. Quanto mais uma sagrada instituição como é a Páscoa. Os hebreus a celebraram a primeira vez com elementos simples: pão sem fermento, cordeiro assado e ervas amargas. Depois, espalhados na diáspora ao longo de mais de cinco mil anos de história, foram incorporando elementos simbólicos naquela que foi preconizada como um rito perpétuo, a ser celebrado no decurso de gerações. A keará, prato com repartições, hoje traz um ovo imerso em água salgada, duas porções de ervas amargas, um misto de vinho e cereais que remete à argamassa usada no cativeiro faraônico… Tudo carregado de muita significação, com o nobre propósito de que cada judeu se veja como se ele mesmo tivesse sido liberto do Egito.
Nos dias de Jesus, judeu, Messias para uns, profeta para outros e mito para uma parte da humanidade, a Páscoa foi celebrada em seus 33 anos de vida. Na última celebração antes de Sua morte, Ele mesmo incorpora elementos que não estavam na instituição dada por Moisés: na ceia pós jantar, pão e vinho são elevados à categoria de entes sagrados que marcariam para sempre as bases da tradição cristã. E a ceia, refeição ordinária antes de se deitar, ganha a alcunha de Santa, sendo celebrada semanalmente nos ritos católicos, mensalmente na maioria dos cultos protestantes, anualmente na celebração das Testemunhas de Jeová. Há registros de que entre nativos sul-americanos catequisados, o ritual se faz com bolinho de mandioca e extrato do fruto do guaraná.
E mesmo entre os judeus, das doze tribos dispersas pelo globo, as variações se multiplicam. Ritos sefarditas, asquenazes, etíopes, messiânicos; se mesclam com a liberdade de interpretação e entendimento dos diversos segmentos cristãos. Em alguns meios, a mesa é livre, todos que se achegam participam. Em outras, é preciso passar pelo rito da primeira comunhão, estar com a sua confissão de pecados regularmente em dia ou ter passado pelas águas batismais do arrependimento. Ao mesmo tempo que me fascina contemplar esse mosaico de tradições, me choca que não haja concordância em se celebrar sobre uma mesa comum. Interpõem-se os dogmas, as regras, as interpretações particulares, os entendimentos teológicos… E a Páscoa persiste, esfacelada, fragmentada; tão partida como um ovo de chocolate que se joga contra uma parede. Talvez o que me console é a profecia de um certo rabino, douto na Lei e nos Profetas, que preconizou na noite-véspera de Sua morte uma grande mesa, mística, ao mesmo etérea e concreta, colocada no Céu, onde todos se congregarão ao redor para partilhar do mesmo pão espiritual, e sobre a qual Ele mesmo disse: “não comerei deste pão convosco até o dia em que o comerei novamente no Reino de meu Pai”.
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Mauricio Ribeiro, jornalista e coordenador da Associação Memorial Amigos de Sião