Porque amanhã é sábado – Para não se esquecer

 

 

Queria saber escrever como se eu pudesse ser capaz de curar alguém. E se eu fosse capaz de curar alguém com o que escrevo, eu quereria poder escrever para ser capaz de curar também a mim mesmo. Depois, curado de mim com o que escrevo, eu reescreveria o fim – ou os fins – de certas histórias que a história me trouxe explicitamente ou em segredo.

Conhecer o corpo da letra de cada palavra, tocar sua pele (nada) neutra como quem, se pudesse, – afastado da praia – pensa como seria poder correr os dedos pela areia. Traçar o pensado como fato dado, como quem semeia e planta o que um dia, na mão santa de um curandeiro, virará remédio. Escrever para além do (e para aplacar o) tédio. Escrever para ser, eu mesmo, esse curandeiro, a tratar sem restrições quaisquer dores e aflições – e por inteiro.

Escrever para registrar, para não se esquecer. Escrever para aplacar o mal-estar por ter de escrever para registrar e tentar não deixar que o mundo se esqueça de todo e tanto mal-estar. Por isso, hoje, se eu pudesse, o que eu queria (sim) é não precisar escrever, por fim. Queria poder fugir à maldição da escrita – que me impele, que me cobra e grita. Mas não posso.

Porque como agora me lembro, sinto e sei. Porque guardo a memória (que urra) de quem um dia me contou sua infância-sina-trajetória de filha de pai preso pela ditaburra (ai, se eu pudesse ser curandeiro!): o pacote de pipoca nas mãos da menina, a menina de pouco mais de sete anos, as mãos do carrasco dentro do pacote de pipocas que era para o pai (ai!). O pacote já não era mais de pipocas, era um estomago infantil enojado em dores.

Horrores. (Pior é não se ter cura). Na memória que tenho, cala em mim a confissão da mulher que conheci e ouvi (aos prantos) – da mulher que um dia foi uma menina a ver o pai torturado, morto antecipado para quem ela levava um pacote – revirado – de pipocas. (Ai. Se eu fosse capaz de curar alguém com o que escrevo, repito, quereria também poder curar a mim mesmo – e quereria poder mudar para sempre o sempre-todo-sempre dessa história).

Maldição da escrita. Cronicar a vida – que, sem volteios, é por si tristeza. Encontrar os meios. Rever certezas. Amanhã é sábado, eu sei. Não nos esqueçamos, porém, do hoje-deste-dia e da imbecilidade daqueles que o celebram. E tentemos, ao menos tentemos, inscrever a cura na dor do existir (da escrita).

 

Alê Bragion é cronista desta tribuna desde 2017.

 

 

 

 

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