“Torne-se um milionário”

 

Sergio Oliveira Moraes

 

9 de Janeiro. “Praça da Catedral”. Manifestação de repúdio aos atos golpistas do dia 8: brutalidade contra o patrimônio público, a memória, os marcos da democracia, a democracia – repudiar a brutalidade sempre, não esquecer, não perdoar, é imperativo. Enquanto ocorriam as falas, algumas pessoas, talvez moradores de rua, da praça, acompanhavam o que acredito poderia soar estranho.

Para eles escrevo. Tento me lembrar da coreografia dos gestos, das palavras e os imagino naquela tarde perguntando-me: democracia? Atentaram contra a democracia? Nós sempre fomos deixados de fora dela. Nós e os alvos da periferia – alvos das “balas perdidas”.  Nós e os povos originários – alvos da cobiça, que já foram milhões, hoje são milhares. Nós e as “minorias” – alvos da intolerância. Nós e os escravizados – alvos da exploração servil. A democracia de vocês foi atacada? Nós sequer fomos apresentados a ela. Hoje vocês vêm à nossa “casa” para nos trazer a esperança de conhecê-la? Não! Vêm para reclamar que ela está sendo atacada.

Vocês me ajudaram a compreender que a tentativa de construção da democracia é que foi, mais uma vez, atacada. E não “a” democracia em si. Esta é um processo contínuo de construção, que tem como base a não exclusão de ninguém do direito a uma vida digna, vocês estavam ali gesticulando, falando, para que eu enxergasse os excluídos. Agradeço.

Escrevo para vocês por conta de um cartaz: “SEM EDUCAÇÃO NÃO HÁ DEMOCRACIA”. Depois daquele dia a reescrevo: “SEM EDUCAÇÃO NÃO SE CONSTRÓI A DEMOCRACIA”. Educação pública de qualidade para todos e todas. E por qualidade quero dizer não só o alicerce para a profissão desejada, sonhada, mas, e principalmente, a autonomia intelectual e a capacidade de olhar para um mundo complexo e enxergar a democracia a ser construída.  Escrevo para contar de um projeto que está sendo implantado, denominado Novo Ensino Médio – “NEM” – vai na direção do aumento da exclusão. E exclusão vocês conhecem.

Escrevo para contar que o tal “NEM”, implantado às carreiras, sem discussão, sem preparação está valendo desde 2022. Graças a ele, faltam horas de aula, matérias para os estudantes das escolas públicas terem a formação adequada para chegarem competitivamente aos vestibulares, para dizer um mínimo. Isso aumenta a exclusão. Leio nos jornais que essas horas de aula diminuídas dos conteúdos curriculares tradicionais estão sendo substituídas por ao menos 1526 opções de disciplinas – e com uma variabilidade numérica e de conteúdo incríveis (o Piauí criou 7, o Distrito Federal 601).

Uma das disciplinas criadas “Educação Financeira – Torne-se um milionário” dá nome a este triste texto. Há exemplos mais tristes, contenho-me. Mas não posso me conter e releio o artigo: “Luta por escola pública de qualidade é dever de todos” (Folha de São Paulo, 16/3/2023), nele a articulista Priscilla Bacalhau cita o estudo (https://fgvclear.org/website/wp-content/uploads/sintese-de-evidencias-educacao-e-crescimento-economico.pdf), segundo o Banco Mundial “o PIB per capita brasileiro poderia ser 66% maior se o pais provesse educação e saúde de qualidade para sua população (World Bank, 2022)”. Pelo estudo,  a melhora na educação leva a um aumento do emprego entre jovens e  redução no número de homicídios. Os números podem surpreender, as conclusões não. Chamo a  atenção que   a contratante do estudo é a Fundação Lemann . Sim, confiram.

É, moradores, moradoras de rua e da praça, a democracia é uma construção, vocês sempre souberam. Até breve.

 

Sergio Oliveira Moraes, físico, professor aposentado ESALQ/USP

 

 

 

 

 

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