As fomes tantas

 

Sergio Oliveira Moraes

 

 

No dia 26 de fevereiro, a jovem Jade Beatriz nos lembrou dos 33 milhões de pessoas passando fome e que um “estudo do IBGE mostra que a fome e a pobreza extrema já alcançam 46,2% da população de 0 a 14 anos. Um triste recorde” concluiu (https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/02/a-gente-nao-quer-so-comida-mas-sem-comida-nao-da.shtml).

No dia 27, uma edição do Banquetaço, dessa vez comemorando o retorno do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). Piracicaba disse “presente” à comemoração com uma atividade na ETEC Cel. Fernando Febeliano da Costa. Parabéns aos estudantes do curso médio e técnico em Nutrição, à orientadora e escola. Parabéns!

Há, todavia, um longo caminho ainda a se percorrer.

Em 2014, saímos do Mapa da Fome e “de 2002 a 2013, caiu em 82% a população de brasileiros considerados em situação de subalimentação” – aponta o relatório da ONU. Em 2018, voltamos – no entanto – ao “Mapa” e “voltamos com tudo”: acima da média global ( como se pode ver em https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/07/06/brasil-volta-ao-mapa-da-fome-das-nacoes-unidas.ghtml). Diante desse triste retorno, surgem as perguntas: por que voltamos ao “Mapa”? Por que foi extinto o CONSEA?

Muito trabalho e solidariedade para retornar aos índices de 2014 e então avançar. Gerações perdidas. Como estudar e aprender com fome? Em seu artigo, Jade nos conta o caso de um colega que por muito tempo teve a merenda escolar como única refeição, a qual ele também compartilhou com a mãe. Quantos serão agora? Um “caso Jade”, que presenciei em um de meus trabalhos de Extensão da ESALQ – durante umas das atividades com as quais colaborei até quase a aposentadoria: o “Show de Física”. Relato.

O “Show”, para estudantes do ensino básico e médio de escolas públicas e privadas, era bastante ambicioso: popularização da ciência, uso racional da energia e quebrar um pouco do preconceito com a física, vendo-a no dia a dia. Ele se iniciava tentando mostrar que “energia” é como um agente secreto com muitos disfarces: energia sonora, elétrica, magnética, química e por aí vai, buscando ilustrar com material lúdico e, tanto quanto possível, fácil de reproduzir.

Estudantes, professoras ou professores acompanhantes acomodavam-se e começava. “Quem pode ajudar?” – perguntei. Um jovem levantou a mão. “Como você acordou?” – perguntei. “Minha mãe chamou” – ele respondeu. “Energia sonora que se propaga até o ouvido. Acendi a luz: energia elétrica, luminosa, térmica energia, agente secreto que vai trocando os disfarces.” E seguimos, até que perguntei: “e o café da manhã?” A intenção era conversar sobre a energia química no gás de cozinha, do fósforo, do acendedor, luz, calor, fotossíntese, alimentos. A resposta do jovem: silêncio. Alguém quer responder? Silêncio.

A professora me chama de lado e diz: “professor, eles não tomaram café da manhã, a primeira refeição será na escola. E se o senhor ficar demorando, pode ser que algum desmaie de fome”. Eu não sabia mais como continuar. Fui confrontado com o que eu deveria saber, eles tinham uma fome anterior. Senti um vazio, uma fome que não sabia nominar. Mas o “Show” tem que continuar, nem queseja só para fazer o tempo “passar mais rápido”, chegar logo a hora da merenda – era o que eu poderia tentar.

Levei para casa uma fome danada de saber se a merenda daquele dia estava nutritiva, saborosa. A minha estava, mas nem por isso foi fácil de engolir. Depois desses anos, ao ler o artigo da Jade, compartilho da sua preocupação:  para saciar a fome de conhecer, aprender, é preciso primeiro saciar a fome do corpo pelo alimento. E me dou conta de que em algum momento eu havia aprendido a nominar a fome que senti naquela manhã – fome de justiça (obrigado Mt 5,6). Se a tivéssemos, teríamos voltado ao Mapa da Fome?

 

Sergio Oliveira Moraes, físico e professor aposentado ESALQ/USP

 

 

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