Alexandre Bragion,
Manhã de carnaval tão terna como a canção que lhe guarda o nome. Ou talvez seja o romance que releio, com Vadinho, vivo que morto, já no primeiro capítulo – caído bem no meio, justamente, de uma manhã de carnaval como a que agora começa. Parece que sinto. Há cheiro de cachaça. Há um defunto no chão da praça a exibir solene e imensa mandioca amarrada entre as pernas cobertas por uma saia rendada ao modo das baianas. É Dona Flor que vem vindo? Bem-vindos são meus São Jorges Amados. Ogunhê! Mas talvez me seja somente o meu estado de alma nesta minha manhã de carnaval, entre um café e outro, enquanto anseio a cerveja do almoço e falseio que ouço o cavaquinho do magricelo Mascarenhas a vibrar mansinho. Fecho o livro e rio, repetindo uma de suas epígrafes ao léu: “Deus é gordo” (afirmou Vadinho a chegar ao céu).
Talvez sejam, agora, de repente, os sábados de carnavais de ontem em minha mente – carnavais descendo a Governador, a exigir que se corra e que se pule atrás da Banda do Bule. Não faltavam Vadinhos vivos pelas calçadas piracicabanas cheias de gente que detesta ver a multidão a correr e a beijar a homens e mulheres mais na boca do que na testa. Talvez seja meu pai quem sobe do mercado, também amaldiçoando a festa – calva sem cor e sem tom, manchada à força da troça com um beijo vermelho de batom. Não era nem meio-dia e já era quase um dia e meio. Cheiro no ar da lembrança o cheiro da cachaça que dança misturada a marchinhas cantadas em altos volumes, animadas por lenços proibidos embebidos em rios de lança-perfume. Meu cachorro late no portão, como meu pai – e ambos praguejam o povo: “Deus os levem, diabos” (e quem dera os deuses me levassem para ser hoje menino e viver tudo de novo).
“Sai da rua!” – gritavam para mim de dentro de casa num daqueles sábados de alegria enquanto eu via pela primeira vez, vestida de purpurina pura, uma mulher-colombina fantasiada de seminua. Deus sabe o que faz – e se Deus fez, não há mal (não, é?). E foi ali, naquela manhã de sábado de colombina sem pecado e pierrô sem rival, que intui por inteiro (e na hora) o que era o carnaval. Depois, e sem combinação certeira, iam as lojas do centro se fechando – ante as brincadeiras da banda que descia cantando e beijando.
Talvez não fossem as falofórias procissões da Antiguidade tão sagradas como as manhãs profanas daqueles sábados de fantasia e verdade, de desejo sem receios, de carne explícita em louvor a Dioniso, de sons, de aromas e de risos. “Deus te guarde” – acabava ao final até mesmo meu pai (já de idade) bendizendo à massa – forjando ver na exaltação popular qualquer forma de santidade.
(“Pois se é Vadinho, [quem morreu] coitadinho dele! – constatou um careta, com sua máscara de meia, perdida a animação. Todos reconheciam o morto, era largamente popular, com sua alegria esfuziante, seu bigodinho recortado, sua altivez de malandro, benquisto, sobretudo nos lugares onde se bebia, jogava, e farreava; e ali, tão perto de sua residência, não havia quem não o identificasse” – descreve o romance de amor dos dois maridos de Dona Flor. Morreram por aqui, como Vadinho, as manhãs de carnaval? – me pergunto, enquanto formulo minha própria negativa afirmação.).
Manhã, tão bonita manhã – repito baixinho, retomando a canção-coração que me quer carnavalizar o sábado em doces ais. Morrem os Vadinhos, penso. Mas não morrem em mim (acho) os carnavais.
Alexandre Bragion, cronista deste matutino desde 2017.