Alê Bragion
Na guarita, todo dia, o funcionário me sorri com a verdade de todo dia. Mal sei retribuir. Temo macular sua bondade com a falsidade com que me levanto da cama. Minha sincera descrença em mim mesmo e na humanidade ofenderiam ao funcionário-amigo da guarita da manhã de meu todo dia. E como o espero(!) – é verdade. Como o espero como quem tem a chave certa para abrir a porta torta da minha vida sem verdades tão puras, tão honestas e tão caras como o seu bom dia. “Bom dia”, me diz e me sorri ele, todo dia, acenando para mim com a mão direita levemente erguida, a me cumprimentar oscilante, a me cumprimentar como quem cumprimenta a alguém que realmente merecesse sua gentil diária docilidade. “Bom dia”, me diz meu amigo-funcionário-verdade, na sua honesta e dócil honestidade a anunciar com vontade que meu dia vai ser, quiçá, como todo dia.
Passo pela guarita como quem me lamenta. Prometo a mim mesmo, hoje, que me enganarei amanhã e também retribuirei aos seus bons-dias com verdade e alegria. (Ou talvez, ao menos, com vontade e simpatia). Depois, me desengano – desenganado que sou. E me emociono em silêncio sem que o funcionário da guarita ou qualquer outro, do meu dia em começo, me veja. Sou fraco para verdades de ouro. Sou fraco para o outro-feito-ouro a me mostrar quem sou – e o que não sou – e a me amenizar a vida com afagos gratuitos. Não sou, mas quereria ser, essa verdade de todo dia – essa singela realidade feita da matéria de quem nada espera do dia e, por isso, dele o nada que é tudo tem.
“Bom dia” – e passo pelo funcionário-amigo-profeta carregando o meu medo de morrer de repente. “Bom dia” – e passo por ele disfarçando o temor de morrer devagar. “Bom dia” – e levo no banco detrás do carro a empáfia de querer um cargo, a necessidade de forjar competência, a exigência de ser bom e a plena certeza de que sou, apesar de tudo, um pseudo-homem feito de um mal irremediável – sempre pronto a cortar os pulsos de maneira tão cristã e (exclusivamente) por minha própria culpa.
“Bom dia” – respondo entre dentes, enquanto passo em baixa velocidade matinal a fim de tentar viver ao máximo a esperança fresca desse momento-devoção materializado numa expressão verbal. Depois, quando já estou quase fora do alcance desse bom dia, ouço ainda o funcionário-irmão me desejar sem volume, de si para si, um “vá com Deus” que penetra meu coração, semi-ateu, como um cravo. Chego a erguer os ombros num automatismo de defesa de quem espera uma pancada certeira. “Vá com Deus” – e fecho os olhos todo dia, sentindo todo dia a flecha dos bons fluidos do funcionário da guarita atravessar minha descrença de pele grotesca.
Talvez, penso, esse “vá com Deus” me torne neste instante um eleito ante os que, sem Deus e sem desejos de “vá com Deus”, morrem num sem-retorno para casa, antes os que padecem pela fome, ante os que choram de dor sem remédios, os que agonizam sem proteção e abrigo, os que são por Deus desprovidos de privilégios divinos. De novo, não sei agradecer também a esse “vá com Deus” – e apenas sorrio sabendo que se Deus existe há tantos mais necessitados imediatamente dele do que eu. Mas não o descarto nem o desprezo, claro, porque também Dele (ou dele) preciso.
“Você também” – respondo, por fim, ao homem na guarita, sem conseguir dar à resposta coesão, fé e sentido. E entre bons-dias, vá com Deus e sentimentos plenos de verdade, o dia se abre – antecipando as veias de um corpo diário feito todo do oposto-sentimento-coração que tanto me deseja o homem-amigo-irmão-funcionário de dentro de sua guarita. E sigo. Ainda sem esperanças. Mas crente de que a vida diária mereceria ser tão pura e tão simples como esses votos sinceros de bom dia.
Alê Bragion, cronista deste matutino desde 2017.