Almir Pazzianotto Pinto
Tenho criticado a 8ª Constituição. Sempre, porém, com propósitos positivos. Partiu, por sinal, do presidente José Sarney a primeira advertência, no momento seguinte ao da solene promulgação, quando teria dito “Com esta Constituição o país é ingovernável”.
A busca interminável da governabilidade, por sucessivos governos, é responsável por 126 remendos ao texto original. Não se salvou, sequer, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Integrado, no início, por 70 artigos e destinado a ser o facilitador da passagem da Emenda nº1/69, à 8ª Constituição de 1988, acabou por se tornar definitivo e alcançar o fantástico número de 122 dispositivos.
Pergunto-me, como seriam as aulas de Direito Constitucional nas Faculdades de Direito? Como justificariam os mestres constitucionalistas a fragilidade de lei, cujas características deveriam ser a concisão, a clareza, a perenidade, só alcançadas pela Carta Imperial de 1824 e pela Constituição republicana de 1981?
Fazer um Estado que seja verdadeiro, quer dizer fazer uma Constituição que seja verdadeira”, disse o presidente da França, Charles De Gaulle, ao escritor André Malraux (Antimemórias, Difusão Europeia do Livro, SP, 1968, pág. 114). Como supervisor dos trabalhos de elaboração da Constituição francesa, por reduzido grupo de juristas, exigiu que fosse breve, “e suficientemente obscura, para poder adaptar-se a diferentes circunstâncias” (Charles De Gaulle – uma biografia, Zahar, RJ, 2020, pág. 618).
A Constituição de 1988 contraria tudo o que recomenda a sabedoria jurídico política. Foi vítima de terrível conspiração, arquitetada por senadores e deputados investidos do poder constituinte, empenhados, porém, na produção texto irreal, confuso, sujeito a distorções, interpretações contraditórias, alterações, de conformidade com as necessidades do Poder. Não sou eu quem o diz. São os fatos. Ao contrário do que deveria ser, no Brasil não se governa dentro dos limites constitucionais. Adapta-se a Constituição aos interesses do grupo governante, ou às necessidades do momento.
Exemplo de paradoxo constitucional é o salário-mínimo. Diz o Art. 7º, que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…) IV – salário-mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.
Responda o leitor se, com R$ 1.302,00, ou R$ 1.320,00, o trabalhador das grandes cidades, onde se concentra a parcela mais numerosa da força de trabalho, consegue garantir para si próprio e para a família – esposa, filhos, dependentes – as necessidades básicas de moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo?
Também agride a inteligência imaginar que a Previdência Social assegura ao aposentado, ou pensionista condições minimamente satisfatória de vida. Ao contrário do que em Brasília se pensa, o custo de vida para o idoso não é inferior ao do homem em idade adulta. As despesas com médicos, medicamentos, cuidadores, assistência hospitalar, se acentuam à medida que a pessoa envelhece. Ser aposentado ou pensionista, para o dependente da Previdência Social não é recompensa pelos anos de trabalho, mas penalidade que paga por atingir a velhice. A única garantia constitucional para o idoso, convertida em realidade, é a que lhe assegura “gratuidade nos transportes coletivos urbanos”, ao maior de 65 anos.
O vasto rol de garantias de caráter social, contido na Constituição, espelha o ambiente surrealista que dominou a Assembleia Nacional Constituinte. Surrealismo é a “maneira de iludir a realidade dos problemas pela ambiguidade e paradoxo”, como o definiu o crítico e historiador de arte italiano, Giulio Carlo Argan (1909-1992), na obra Arte Moderna.
Na Constituição de 1988 – sem desprezar a importância como instrumento de defesa do Estado Democrático – o surrealismo com que foi tratada a questão social tornou-a desafio a ser solucionado, mas pelas próximas gerações. O Brasil, na sua maior parte pobre, com mais de 30 milhões de famintos e outros 60 vivendo abaixo da pobreza, não dispõe de recursos econômicos para arcar com as despesas necessárias à solução das carências sociais. Seria necessário triplicar o Produto Interno Bruto, tarefa que exigiria persistência, honestidade e trabalho.
O presidente Lula venceu as eleições. Voltou a prometer resultados não alcançados nos mandatos anteriores do Partido dos Trabalhadores. Erradicar a pobreza exige mais trabalho do que promessas vazias. Dispõe, agora, de quatro anos para cumprir tudo quanto foi prometido e não conseguido em doze. Poderia começar pelo salário-mínimo, pela atenção à família, à infância, à juventude, aos idosos. Dentro da Constituição e sem demagogia.
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Almir Pazzianotto Pinto, advogado, foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho. Autor de A Falsa República