Camilo Irineu Quartarollo
Estudiosos como John Meier dizem que o nascimento em Belém não é fato histórico, mas alegórico. Jesus teria nascido em outro lugar qualquer, longe da Belém, talvez pelas mãos das parteiras da alta Galileia. O recenseamento era devido às perdas de arrecadação tributária nas províncias romanas, mas não teria alcançado esse natalício dentre as palhas do presépio.
O casal teria voltado ao templo e ali José pôde oferecer somente uma pomba que, para Saramago, não encheria nem uma cova dos dentes de Deus. O literato o diz no sentido da inutilidade dos sacrifícios, ou melhor, o ateu confesso mostra que as tais ofertas serviriam mais a quem tem fome e subnutrição. Pobres bois, pobres aves, mortos em sacrifícios propiciatórios de uma humanidade desumana, porém piedosa.
O ateu Saramago questiona ainda o Deus dos cristãos por ter salvo uma criança e deixar outras tantas à mercê da espada de Herodes. Qual vida deveria ser salva, somente a do menino do presépio? Herodes confidenciara aos magos que o informassem do paradeiro da criança para que ele também pudesse ir “adorá-la”!
No Brasil, a infecção pela variante mórbida de Herodes. A saúde foi mortalmente atingida pela onda negacionista e de barbárie. Cinco milhões de inocentes à mercê do vírus! No país, há 6 milhões de alminhas de até dois anos, mas para os bracinhos destas há apenas um milhão de vacinas disponíveis nos postos!
Todo santo dia morrem duas crianças na faixa dos cinco anos, acometidos de Covid.
A Poliomielite, antes erradicada voltou. Quem não viu nem imagina o que era ter um coleguinha com paralisia infantil – pés tortos, dores nas articulações, andar desengonçado.
Já não se viam essas sequelas da paralisia, cujo protocolo vacinal o Brasil cumpria exemplarmente em todos os anos. Contudo, desde 2015 a cobertura vacinal foi caindo para uma insegurança quase absoluta. A vacina da Pólio e de todas outras obrigatórias do calendário infantil para pessoinhas com menos de um ano à mercê da cobertura inadequada – observa Arthur Chioro, ex-ministro da Saúde.
Importa mesmo onde Jesus nasceu? Por acaso a face divina não está em cada criança, nos sinaleiros das metrópoles, dormindo pela praça da Sé paulista, sob os jornais escarrados de Brasília, sob as penumbras pela cidade e camufladas nas estatísticas de gabinetes? Por certo a criança pedinte e suja sumirá do nosso retrovisor e reaparecerá no nosso presépio, meiga e sorridente com os bracinhos de louça. A devoção clássica é notadamente estética, pintura, por vezes finge uma ética com aura social.
A criança de hoje é a cidadã ou cidadão de amanhã. Na tenra idade é que as impressões boas ou más marcarão a vida toda delas e de nossas ditosas velhices. Inda bem que nossos “jacarezinhos” estão todos aí rindo e pulando para nossa felicidade e, se Jesus nasceu em Belém, que essa força simbólica renasça aqui, mesmo com recenseamento a passos de jumento.
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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor, autor de crônicas, historietas, artigos e livros.