Sergio Oliveira Moraes
Bem-vindo, professor Rubem Alves! Vamos entrando, vamos prosear na cozinha, junto à mesinha da nossa mãe. Ela, também amorosa com as comidas, fazia as refeições aqui, quando não eram dias de reunir a família. Quando só ela e eu, aqui, picando legumes, envasando potes com geleias caseiras, doces, temperando, ouvíamos musica e proseávamos. Mau aluno, bocadinho que aprendi, conservo. Cheirinho é bolo de fubá e café coando, cozinha coração da casa, entre os quartos e a sala, perfumando, chamando… Geleia é de amora – colheita nossa, pouco açúcar, confira se é do gosto.
Na prateleira atrás do senhor, livros de receitas e crônicas sobre comidas, memórias. Esse: ‘A Filosofia na Cozinha’, da Francesca Rigotti: ‘Conhecer e comer, palavra e comida, diz Rubem Alves, são feitos da mesma massa, são filhos da mesma mãe: a fome.’
O porquê do meu apelo para um dedinho de prosa? Eu o conheci na Unicamp, em 1978, e impressionou-me sua fala tranquila, teologia, filosofia… Acompanhei de longe: crônicas, metáforas, escritos sobre educação, a Escola da Ponte. Pelo que estamos passando, ‘invoquei-o’, como Ulisses na Odisséia invoca Tirésias para perguntar como voltar à Ítaca, sua terra, sua casa (ele está perdido).
Eu, Ulisses tupiniquim, perdido também, o senhor é Tirésias, sinto assim. Quatro anos de sereias nos encantando para a indiferença pelo outro, poções de Circe para esquecimento, Polifemo canibal da carne indígena… Achar o caminho de volta à Ítaca, pretendentes de Penélope consomem o patrimônio da minha terra: já não há mais Observatório Astronômico, não mais Pinacoteca, não mais tolerância, bom senso… Voltarão um dia? Professor, o senhor que tanto amou os jardins, e ama, como explicar a destruição das florestas? Como aceitar que o Criador nos deu um jardim para viver e estamos destruindo? Destruindo a obra da Criação, homem, animal e árvore, em números que não se conta? Como entender que fechamos o Observatório Astronômico – é assim que se mata a fome de conhecer? De olhar para o céu? De contemplar a obra do Criador, para os que creem? É assim? Destruindo a arte e a cultura? A fome de palavra e comida é imensa, só aumenta, dói.
O que está acontecendo? O canto das sereias da extrema direita entrou nas escolas, enfeitiçando meninos e meninas, pregando ódio ao diferente: ‘é que Narciso acha feio o que não é espelho’, licença Caetano. O senhor se preocupou com a educação, dizia que aprendemos ferramentas e brinquedos. Ferramentas para resolver problemas, brinquedos para dar prazer, suas metáforas. Assim, aprendemos ferramentas para curar pessoas, construir casas… aprendemos poesia, futebol, violão… prazer.
Mas aprender o ódio ao outro? As frases, rituais, gestos extremistas? O culto às armas, à violência e morte? Sim, Professor, acontecendo em muitas escolas. Informações do monitoramento do número de células neonazistas contam que no Brasil saltou de 75 para 530 de 2015 a 2021. Erramos muito Professor, nem tudo foi, é, brinquedo e ferramenta…
Como fazer para que os jovens entendam que agredir, excluir o outro, ‘marcá-lo’ – por qualquer que seja o motivo – é o canto da extrema direita hoje, assim como o foi no nazismo? A escola deve alertar sobre o canto das sereias extremistas, mas como fazê-lo de maneira que os jovens se convençam de que só o canto do respeito e compaixão pelo outro merece ser seguido? Ajude-nos Professor.
Se o senhor puder voltaremos à prosa e tento fazer umas quitandas. Bolo de fubá mesmo? Bom que gostou. E o ‘cantinho’ da nossa mãe? Encantada como nosso pai, diria o outro mineiro Guimarães Rosa. Claro, passo mais um café, pelo visto acertei o ponto; enquanto isso pegue outra fatia de bolo…
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Sergio Oliveira Moraes, físico, professor aposentado Esalq/USP