O visionário

Sergio Oliveira Moraes

 

 

Por favor, Professor Darcy Ribeiro, achegue-se, um bocadinho de prosa, ou melhor, para me ouvir, baita pretensão. É que eu preciso demais desabafar. Por que escolhi o senhor? Sem essa de senhor. Você?  Só Darcy? Tá. Prova essa torta de chocolate, receita de dona Maria Stella Libânio Christo, mãe de Frei Betto, mineira como você – é torta de aniversário, pelos seus 100 anos dia 26/10.

Esquecer? Você foi Patrono da nossa turma de 1977. É, olha aí o convite, coisa de mãe e pai guardar, olhar vez em quando, hoje está comigo. Pena não ter naquele dia um gravador como o cacique xavante Mario Juruna, que teve seu apoio para ser o primeiro indígena eleito para deputado federal, e o foi pelo PDT. Juruna gravava o que os políticos diziam, para cobrar depois, lembra? Claro que lembra, desculpe.

Você foi amigo dos povos indígenas, eles retribuíram: ’Eu fiz uma coisa pelos índios que foi criar o Parque do Xingu. Mas eles fizeram mais por mim. Eles me deram dignidade e hoje posso ir a qualquer país do mundo falar de índio. ’Humilde Darcy: ‘Mas eles fizeram mais por mim. Eles me deram dignidade’.

Ah, visionário que pensou o Brasil e pôs a mão na massa, ainda vamos aos “Trancos e Barrancos” (tenho sim, comprado em um sebo). Continuamos destruindo as florestas, morada ancestral dos irmãos indígenas, matando-os, entre tantos outros crimes – nos superamos no quesito barbárie nesses últimos 4 anos. Sim, há uma longa e dura estrada pela frente, que passa pela educação de qualidade, você sabia e foi grande nessa área também.

Em São Paulo, uma das propostas do governador eleito é a privatização das escolas públicas. Sim, Darcy, nada melhor para aumentar a desigualdade social e a dependência científica e tecnológica de outros países, que dificultar ainda mais o acesso à educação, você me ensinou isso também. Carioca ele, Darcy, sem ironia, você que tanto fez pela educação pública no Rio de Janeiro (com os CIEPS, para ficar no básico). Você que lutou pela educação pública e gratuita, no inicio dos anos 80 profetizou: “Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios.” Profetizou no deserto, hoje temos a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e China.

Um dia prosear sobre tudo o que você fez pela educação, precisamos. Agora lembrar a resposta do Leonel Brizola, que foi governador e você vice no mesmo Rio de Janeiro, e que em um debate, ao ser interpelado sobre os custos da educação, declarou: “Cara é a ignorância.” Ah, profeta! Os tempos que vivemos, ‘fake news’ e ‘teorias da conspiração’, por que não o ouvimos? E quando você, paciente terminal, fugiu do hospital para concluir mais um dos seus livros sobre sua terra e seu povo? Ah, apaixonado!

Sim, está tarde, mas eu gostaria, antes de cantar parabéns, lembrar um trecho do seu discurso na Sorbonne, quando recebeu o título de Doutor Honoris Causa: “Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.”

Você não imagina a força dessas palavras, você transformou a derrota em vitória, quando a causa é a vida com dignidade para todo o povo brasileiro. Não imagina como elas têm ajudado nesses quatro anos terríveis que temos vivido e como preparam para a estrada que é longa e dura. Feliz aniversário Darcy, obrigado por ter sido nosso Patrono, ainda não havia agradecido. Mais um pedacinho de bolo?

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Sergio Oliveira Moraes, físico, professor aposentado da Esalq/USP

 

 

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