Marley e Belinha

 

Sergio Oliveira Moraes

 

Não, Belinha, eu não contei tudo no artigo anterior em que repeti minha promessa. Não consegui… Chegar até ali já me foi muito difícil, mas é preciso continuar, falar sobre o Marley, Belinha.

Marley era o cachorrinho que o apoiador do atual presidente matou a tiros por ter latido durante a carreata. Fico imaginando a cena, a família entrando em casa atrás do animalzinho, encontra-o morto, ensanguentado. Marley foi presente a um garotinho que estava triste pela morte prematura do pai, seu ídolo, e Marley tornou-se seu companheiro. E de companheira você entende, não é Belinha?

Magoo era a sua. Terence Hill, você e Bud Spencer. Magoo, em um improvável filme de Trinity estrelado por cães. Quando uma latia a outra vinha correndo. Lembra quantas vezes levantei de madrugada para salvar um saruê encurralado, você tentando subir na árvore e apanhá-lo –Magoo tentando cortar a árvore com os dentes que não tinha, perdidos no abandono em um canavial, antes de a adotarmos. Deve estar lembrada também que quando você adoeceu, quando chegou o tempo das visitas quase diárias ao veterinário, a canícula na perna para soro e medicação, Magoo esperava no portão, indignada imagino – porque eu não fui junto? Onde você estava? Depois cheirá-la, tentar refazer seu caminho sem ela, você ficava imóvel até que aquele ritual tão canino terminasse. Não sei se é impressão, se confundo, mas ao refazer na memória aquele ritual, me parece que a cada dia se tornava mais lento, mais cuidadoso, como se os cheiros misturados contassem a Magoo que você estava mais frágil, que breve a deixaria, dizem que os cães sentem essas coisas.

Sentindo ou não, quando você se foi, não sabe como ficou sua companheira, o quanto esperou no portão, latindo, chamando-a. Sem querer comer, olhava para mim e eu a imaginava perguntando: quando ela volta? Não vai buscá-la? Primeiro a ‘negação’, cães também são assim? A mãe do pequenino contou que também ele não estava comendo direito, perguntava pelo cachorrinho, houve outro Marley? Gostaria de acreditar que sim.

Você não sabe Belinha, mas os sinos dobraram sem parar nesses quatro anos. O basta no próximo dia 30 é por ser insuportável que alguém carregue uma arma e, como se não bastasse, a use para matar um cachorrinho que late durante uma carreata. É insuportável que os latidos do Marley incomodem, mas não os sinos dobrando sem parar a cada grito de dor dos amarrados nas camas dos hospitais por falta de analgésicos, a cada morte evitável pela Covid-19, a cada árvore no fogo infernal, a cada animal encurralado pelas chamas, no desespero pela vida dos filhotes e a própria, a cada emboscada aos povos originários e seus defensores, a cada…

Mas é insuportável também Belinha, que o taxista Márcio Antônio do Nascimento Silva tenha precisado recolocar as cruzes fincadas na areia de Copacabana pela ONG Rio de Paz, para homenagear as vítimas da Covid-19, uma das cruzes, seu filho, outra sua irmã, outra… Como compreender que cruzes incomodem, mas pessoas sufocando nos hospitais por falta de oxigênio, por negligência, não incomodem? Como?

Perceba, Belinha, há a defesa da democracia no meu voto de oposição ao atual governo; mas há também a defesa pelo direito à vida, por um vivermos todos em paz, todos, para que nunca, nunca mais um cachorrinho seja morto por latir, cruzes para homenagear os mortos sejam arrancadas, para que os sinos parem de dobrar sem cessar. Mas, e talvez principalmente, para que todo esse sofrimento dos que se foram e dos que ficaram não tenha sido, não é em vão, basta!

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Sergio Oliveira Moraes, físico e professor aposentado da ESALQ/USP

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