Alexandre Bragion
À barca, à barca, houlá! Que temos gentil maré! Valha-nos Deus! Que o diabo está sobrando e não é pouco – e nunca se falou tanto dele. O diabo anda nas bocas, anda nos becos, nos breus das tocas e dos palácios, nos planaltos e dentro da igreja. O diabo está nos discursos de campanha, na eleição, na apuração, na contestação, na acusação – houlá! – hoje não háonde o diabo não esteja. Por isso, nos acautelemos, porque como nos ensinaram os alemães – entendidos que são em diabos – “quem com o diabo anda, com ele termina”. E deve ser verdade esse bilhete, pois de tanto andarem com o demo na língua de sua literatura, terminaram os alemães na língua fervente dele, houlá! E não foi?
Foi. Andando com o diabo na língua do século XIX é que Goethe escreveu uma das mais importantes obras da história da literatura universal, o “Fausto” – peça teatral dos infernos na qual a personagem Fausto faz um pacto com o Demo. NoXX, foi a vez da língua diabólica de Thomas Mann – uma espécie de supragoethe (com a devia vênia dos goethianos) – escrever também o seu “Doutor Fausto”, romance dos diabos e que retomou a tradição alemã da atração pelo Sete Peles.Justiça seja feita, porém, fato é que nem só de pão amassado com chucrute viveu o diabo – pois nas mais diversas culturas e literaturas o tinhoso sempre mostrou o seu rabo.
Em francês, por exemplo, o diabo esteve com Valery em “O Meu Fausto” (“MonFaust” em francês tréschic!). Aliás, vale dizer que o diabo de Valery, em pleno século XX, perdeu a força e já não metia mais medo nem tentava mais ninguém – porque, num mundo mais diabólico do que ele, o diabo é quem era tentado. Tentada foi também a Inglaterra da endiabrada Rainha Elisabeth, que nos legou a genialidade de Marlowe – dramaturgo que também escreveu o seu “Fausto”, morrendo poucos tempos depois – e não faço aqui qualquer alusão demoníaca conspiratória, uma vez que a morte do dramaturgo foi uma infelicidade casual – ou ao menos eu acho que foi. (A bem dizer, Marlowe morreu numa briga bestial em um bar).
Com bares por todos os lados, não faltam a Portugal seus diabos literários cheirando à ginginha, ora pois. Fernandoso Pessoa, sempre ele, é claro que não deixou de dar a luz das trevas ao diabo dele – e também escreveu o seu “Fausto.” Bem antes da pessoa de Pessoa, Gil Vicente – no XVI – pôs o diabo na terra (quase) firme do além-morte de “O Auto da Barca do Inferno” – houlá! (Falando nele, Gil Vicente foi quemnos deu a maiscuriosa lista de xingamentos com os quais se pode ofender ao diabo – e eu não perderia a diabólica oportunidade de aqui relembrar alguns, como “ratinho de uma giesteira, furta-cebolas, filho de uma grande aleivosa, rachador de alverca, sapateiro da candosa, entrecosto de carrapato, neto da cagarrinhosa, cornudo, caganita de coelho, perna de cigarra velha, rabo de forno de telha”.
Clássico dos clássicos, o italiano Dante Alighieri por sua vez presenteouo mundo com um inferno e um diabo dos mais divinos de todos os tempos. Sem tempo para divindades, o Paraíso Perdido de John Milton nos mostrou um diabo que foi embora do céu alegando justa causa e argumentando que é melhor ser rei no inferno que escravo no paraíso. Já no Brasil, é óbvio que o diabo se adaptou muito bem – e ao menos desde “A Igreja do Diabo”, de Machado de Assis, o Coisa Ruim faz um sucesso danado por aqui(Guimarães Rosa que o diga, e seu Grande Sertão Veredas também).
De olho nos dias atuais, é bom lembrar que a raiz grega “demo” – que forma a palavra “democracia” – nada tem a ver com o Demo “filho do enxofre”. Detalhe curioso, “demo,” nesse caso, quer dizer “povo” – e democracia, como todos sabem,“governo do povo.” Com isso,ficoaqui pensando – e que os deuses e deusas me perdoem – se não é por desconhecer etimologia que “aquele de quem não se pode dizer o nome” odeiatanto a democracia. Será que teme concorrência?Como o diabo mora nos detalhes, não nos esqueçamos que – seja com Deus ou com o Diabo na Terra do Sol –nada melhor do que a boa e pura água benta da Democracia para vencer os cramulhões que nos querem sugar a alma no hoje-sempre. Não é? Cruz-credo. Cracia do Demo neles!
Alexandre Bragion, cronista (quase diabólico) deste matutino desde 2017