Descobri esta semana que tenho um leitor que acompanha sempre as minhas crônicas aqui pela Tribuna e, pasme-se, parece gostar de verdade do que escrevo. Sem ironias nem falsa modéstia, em épocas de “cancelamentos” virtuais (e mesmo presenciais) saber-se lido e, de alguma forma, apreciado é uma dessas alegrias que inflam facilmente o ego de cronistas e outros tipos de escorpianos (secretamente) vaidosos como eu. Além disso, ter um leitor é uma conquista fenomenal em tempos de bolsonarismo – não é? E se o próprio Brás Cubas, do genial Machadão, calculava com certa (falsa) alegria ter por volta de cinco leitores, quem sou eu para não brindar com vinho dionisíaco a descoberta repentina desse meu leitor número um?
O problema é que, apesar de agora saber que ele existe, ainda não o conheço – e ele, pelo jeito, talvez não me conheça também tanto assim. Explico. Um amigo que não vejo há muito me ligou esses dias para me contar que foi parado por um homem (num supermercado) que o cumprimentou por “suas” crônicas em “A Tribuna.” Surpreso, meu amigo revelou ao homem que não sabe escrever nem mais o que antes se escrevia nos cheques – muito menos havia ele publicado uma crônica na vida. Foi aí que esse meu leitor misterioso disparou incrédulo: “então, você não é o Bragion?” Meu amigo disse que não, mas que me conhecia e transmitiria de bom grado a mim os elogios generosos.
“Os deuses vendem quando dão” – já ensinou Pessoa – “paga-se a Glória com desgraça” (e acrescentaria eu, modestamente, a esse verso maravilhoso: “vendem e escarnecem”). Explico de novo. Só pode ser ironia divina esse meu amigo – que é magro, de cabelos pretos e cacheados – ser confundido comigo (e, pior ainda, receber repentinamente os elogios que são para mim). Pilhéria do destino, a sacanagem se completa se pensarmos que, a não ser que esse meu leitor costume cumprimentar as pessoas na rua achando que uma delas sou eu, o fato de ele ter erroneamente cumprimentado (no meio de um supermercado) justamente a uma pessoa que me conhece é dessas situações tão inverossímeis que só podem se dar mesmo no plano do real – do ironicamente real (ou surreal), pois na literatura soariam demais.
Falando em enganos surreais, lembro ainda que outro amigo querido (e já saudoso), o violinista Helgo Ackermann, certa vez – estando no México, visitando uma feira literária – foi confundido com J. M. Coetzee (o sul-africano prêmio o Nobel de literatura). Falando espanhol com sotaque meio brasileiro meio alemão, as negativas de Helgo não convenceram aos organizadores do evento de que estava havendo uma enorme confusão e que ele – sob nenhuma hipótese – era quem pensavam que fosse. Mas não houve jeito, Helgo teve de sair da feira antes que a imprensa, acionada, chegasse para entrevistá-lo. (Enquanto isso, penso, Coetzee devia estar passeando despercebido entre as gentes, solitário e talvez desolado por não ter sido reconhecido).
Eu mesmo, confesso, já vivi meu dia de glória alheia quando uma vez, fazendo a cobertura da Festa Literária da Serra da Mantiqueira, em São Francisco Xavier, fui rodeado por um mar de crianças que queriam tirar fotos comigo, achando estarem diante do professor Tibúrcio, do “Castelo Rá-tim-bum.” Sem saber como reagir, e demorando a entender direito o que se passava, resolvi não desiludir os pequenos e acabei tirando as tantas fotos que queriam até que se cansassem e fossem embora. Depois, descobri que ter parado o meu carro ao lado do carro dos jornalistas da TV Cultura ajudou – em muito – em minha meteórica e efêmera fama. (Os deuses vendem ou não vendem quando dão?).
Na verdade, pensando bem, acho que não há tanto problema que os deuses vendam suas graças assim – a nos escarnecerem um pouquinho em nossos momentos de glória. A questão, para nós, pobres mortais, talvez seja justamente saber como pagar esse preço e curtir o momento. Quer dizer, vivendo de glórias alheias ou próprias, mais vale – como disse o (esse sim) inconfundível Contardo Calligaris – ter uma vida interessante do que uma vida perfeita. Estou com ele! Que venham os enganos e os sábados, como os de hoje, porque hoje é sábado e os deuses e as deusas vendem mais barato aos fins de semana (será?).
Um forte abraço ao meu leitor desconhecido – e obrigado pela leitura!
PS: mudei a foto daqui para tentar evitar novos enganos – em todo caso, Osmar Prado que se cuide!
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Alê Bragion, “clonista” deste matutino desde 2017